É no seu pequeno estúdio na Cossoul, em Lisboa, que Miguel Lamas grava um podcast em que dá voz a jovens acompanhados pela Equipa de Integração Comunitária da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
O objetivo, segundo diz à Renascença, é “dar voz a jovens que passaram por situações difíceis”, desde a adoção à violência doméstica, à mutilação genital feminina ou ao trauma de atravessar o Mar Mediterrâneo de barco.
Para já, oito episódios foram gravados e o programa está agora em pausa, mas volta em setembro. A primeira entrevista foi a João Bicho, o diretor da Equipa de Integração Comunitária, mas um dos episódios que mais marcou Miguel Lamas foi o de Aua Embaló.
Com 21 anos, natural da Guiné-Bissau, frequenta o segundo ano do curso de Educação Social no Instituto Superior de Lisboa e Vale do Tejo. Ativista na luta pelos direitos humanos e pela promoção da inclusão social, é acompanhada desde janeiro do ano passado e ao podcast contou a sua história, marcada pela mutilação genital feminina.
Sei como é difícil sair do tal ritual. Como pessoa que passou por isso, consigo compreender que não é correto e que não quero fazer isso com ninguém
“Obviamente que sou contra a mutilação genital feminina, e se me perguntarem se vou fazer isso aos meus filhos, digo ‘nunca’, mas não julgo quem o faz”, conta, explicando que, apesar de ser crime, o ato é ainda é prática usual no país.
Aua veio para Portugal com 15 anos para viver com o pai. Hoje, tem como objetivo criar uma casa onde vivam idosos e crianças.
Bhoye Diallo e o abacateiro que cresceu na selva
Ao sexto episódio surge Bhoye Diallo: natural da Guiné Conacri, chegou a Portugal depois de atravessar o Mar Mediterrâneo de barco, mas a travessia foi longa.
Depois do pai morrer, mudou-se para a Guiné-Bissau com a mãe, mas esta não se adaptou e voltou ao país-natal. Foi aí que Bhoye começou a sua viagem sozinho, com o objetivo de voltar a estudar.
“Tomei a decisão de atravessar o deserto para chegar a Marrocos, uma viagem muito dolorosa. Éramos mais de 20 pessoas sentadas dentro de uma carrinha de caixa aberta. Sabíamos que, se alguém caísse da camioneta, ficava entregue a si mesmo”, conta.
Em Marrocos juntou dinheiro a limpar ruas com o sonho de atravessar o Mar Mediterrâneo. Pagou três viagens de barco - e só à terceira conseguiu chegar ao destino. “Foi só à terceira vez que consegui atravessar o mar e chegar a Espanha.”
Aí concluiu que o melhor local para terminar os estudos seria Portugal. Quando chegou fez um pedido de proteção internacional no SEF e hoje é acompanhado pelas equipas de integração comunitária da Santa Casa, com quem se cruza diariamente e a quem partilha lemas da filosofia ubuntu, da qual é atualmente formador.
Sabíamos que, se alguém caísse da camioneta, ficava entregue a si mesmo
Para trás fica um ensinamento do falecido pai na Guiné Conacri: “Vou plantar uma árvore dentro de casa e outra fora de casa. Na tua opinião, qual é a árvore que vai crescer mais rápido”, perguntou o pai. “Acho que é aquela árvore dentro da casa. Evitará o sol quente e o vento forte e a vida dela será mais fácil e protegida”, disse Bhoye. “O meu pai ensinou-me então uma lição de vida que nunca vou esquecer. É que são as dificuldades que a árvore passa que a tornam tão alta e bonita.”
À semelhança do abacateiro que cresceu na selva, também estes jovens se tornaram mais resilientes depois de viverem histórias dignas de um filme.