Germano Almeida. “Trump está a cumprir e isso não é bom”
06-11-2018 - 16:55
 • José Bastos

Trump não aparece em nenhum boletim de voto, mas nas legislativas bienais o Presidente multiplicou a sua presença em comícios “É, claramente, um referendo sobre Trump”, defende o analista Germano Almeida, autor do livro “Isto não é bem um Presidente dos EUA”.

“Uma vitória dos democratas para a câmara de representantes pode não ser assim tão má para Trump”, defende o analista Germano Almeida. As sondagens apontam para um resultado renhido, mas com os democratas a conquistar a maioria na câmara de deputados e os republicanos a manter o controlo do Senado, um cenário que facilitaria a Trump um novo bode expiatório para justificar insuficiências na segunda parte do mandato: a hostilidade do aparelho legislativo.

A verdade é que Trump não aparece em nenhum boletim de voto, mas nas legislativas bienais o Presidente multiplicou a sua presença em comícios e alertou as bases republicanas contra uma possível vitória “dos radicais democratas” e contra a imigração.

“Não estou no boletim de voto, mas estou”. A afirmação de Trump é contraditória, mas resume bem o que está em jogo nesta terça-feira. “É claramente um referendo sobre Trump”, defende Germano Almeida, autor do livro “Isto não é bem um Presidente dos EUA”, em que analisa as decisões e peripécias da actual administração nos “anos da perturbação americana”.

Depois de ter avaliado os dois mandatos presidenciais de Obama e o perfil político de Hillary Clinton, no seu quarto livro sobre a política norte-americana o investigador Germano Almeida desenha agora uma visão muito crítica sobre o comportamento e desempenho de Donald Trump.

Trump não vai hoje a votos, mas sujeita-se a um referendo?

Sim, pela forma como tem conduzido a campanha. Se olharmos para a história, verificamos ser muito abusivo retirar demasiadas conclusões sobre os resultados das eleições intercalares. Nas últimas 21 eleições, o partido do Presidente perdeu 19 e, portanto, é relativamente normal que os republicanos percam alguma das câmaras.

Desse ponto de pista, e tendo em conta a bizarria da vitória de Trump nas eleições presidenciais de há dois anos, era de esperar nestas intercalares uma maior onda democrata. Parecia que essa onda existia até há algum tempo, mas o que as sondagens mostram agora é que os democratas poderão ganhar algo: a Câmara dos Representantes, a câmara baixa do Congresso, embora com uma pequena margem. Não é de excluir uma surpresa em que os republicanos possam ficar muito perto da vitória ou até manter mesmo o controlo da câmara, embora o mais provável seja os democratas ganharem.

Já no Senado, embora a vantagem dos republicanos seja muito curta, a verdade é que só 1/3 do Senado vai a jogo e dos 35 lugares em disputa, 26 ou 27 são democratas. Na verdade, no Senado, os democratas têm mais a perder do que a ganhar. A questão será se os republicanos mantêm a pequena vantagem ou até se a aumenta ligeiramente. Com este pano de fundo um “split congresso”, um poder partilhado e dividido retira o poder absoluto que neste momento os republicanos têm entre Casa Branca e Congresso, mas mantém a bola do lado de Donald Trump.

Se as legislativas a meio do mandato costumam servir de castigo ao partido na Casa Branca - desde Roosevelt a maioria dos presidentes vê a sua bancada encolher - Trump tem boas cartadas: economia em grande forma, baixa de impostos, Wall Street em máximos, colocou dois juízes no Supremo em dois anos, mas, ainda assim, radicaliza com a imigração e uma onda esquerdista se os democratas ganharem terreno. Trump aposta tudo?

Donald Trump está a capitalizar bem alguns dos méritos da sua presidência, que têm a ver com o cumprir a sua agenda. Nesse aspecto, Trump não pode ser criticado. No geral, Trump está a cumprir a sua agenda. É um Presidente nacionalista, anti-imigração, proteccionista nas fronteiras, proteccionista no comércio, mas internamente com esse corte de impostos já conseguido está, de facto, a gerar uma reacção de curto, médio prazo positiva na economia norte-americana. A classe média está a sentir mais algum dinheiro no bolso. O crescimento foi de 3,5% no último ano. O crescimento dos salários foi na ordem dos 3%, o que já não acontecia há algum tempo na América. A taxa de desemprego está a descer ao ritmo a que descia nos anos Obama, mas a percepção é a de que na perspectiva económica estes dois anos Trump têm sido positivos e isso, como sabemos, é muito importante.

Se 70% dos americanos têm a percepção de que a sua vida está melhor, esse é uma percepção muito difícil de contrariar na urnas?

É, mas, no entanto, há alguns temas que podem ser importantes em alguns estados decisivos e que os democratas têm vindo a explorar. Por exemplo, o Health Care, a política de saúde é o "calcanhar de Aquiles" dos republicanos. Trump não conseguiu ainda acabar com o Obamacare e nem sequer tem ainda um plano que o substitua, sendo que quer apresentar esse plano. No Partido Republicano, há quem defenda que não deve haver qualquer plano de saúde, mas Trump quer um Trumpcare. Esse é um problema para o Presidente.

Depois, há toda uma tensão politica e social que poderá levar à mobilização de partes do eleitorado que falharam com Hillary Clinton há dois anos e que agora podem aparecer. Falo de jovens, de mulheres e de algumas minorias que, pelo menos nas sondagens, estão a dizer que vão mobilizar-se a favor do Partido Democrata.

Lembro também que todas as eleições parciais, pontuais que se realizaram desde 2016 - e não foram assim tão poucas - e, sobretudo, aquela escolha de um lugar no Senado feita no Alabama, um dos estados mais conservadores e mais à direita dos Estados Unidos, tiveram um resultado desfavorável a Donald Trump. É verdade que foi numa fase em que ele era mais impopular. Em resumo, diria que, embora o Presidente tenha bons trunfos, há também um sentimento de mobilização anti-Trump que pode impulsionar a mobilização democrata.

Em momentos de polarização extrema, os consensos são mais difíceis. Se os republicanos perderem o controlo de uma ou de ambas as câmaras, Trump fica de mãos atadas no resto do mandato. Uma curiosidade é a de uma vitória democrata na câmara dos representantes poder abrir caminho ao "impeachment" de Trump?

Não seria muito inteligente avançar para um "impeachment", porque, se for uma vitória - como parece vir a ser -, apenas na metade, apenas na câmara dos representantes de onde parte o poder legislativo, a iniciativa fica do lado dos democratas, mas o senado, sendo a câmara alta terá sempre a hipótese de travar e de vetar as coisas mais significativas, mais importantes.

Sabemos que o senado tem também um papel importante em politica externa e sabemos que boa parte de um possível caso de "impeachment" contra Trump passa muito pela questão das relações externas, por uma eventual traição à pátria pelas informações alegadamente passadas aos russos. Neste quadro, não vejo forma de se construir em tão pouco tempo - até 2020 - um "impeachment" que não passe pelo Senado. Seria pouco inteligente da parte dos democratas fazer isso. Mas é normal que, se a vitória dos democratas for significativa na câmara dos representantes, haja uma primeira mensagem do tipo "vamos travar a agenda do Presidente" e o Presidente vai ficar o chamado pato coxo (lame duck), como Obama ficou em grande parte do seu mandato. Acabaria por ser uma inversão de papéis em relação aos anos Obama e isso faria algum sentido e isto do ponto de vista legislativo. Já Trump, que é mais hábil do que parece a negociar, poderá ter mais um bode expiatório, que seria um congresso de maioria democrata. Isto, depois dos media e depois do poder judicial. Portanto, se calhar, uma vitória democrata na câmara dos representantes poderá não ser assim tão má para Donald Trump.

Mas no comportamento específico de cada eleitorado, quantos conservadores vão votar nos republicanos apesar de Trump ou mobilizados por Trump?

Nós sabemos que as intercalares têm uma taxa de abstenção enorme, acima dos 60%, e, se de alguma maneira este clima mais polarizado levar a um aumento da participação, será um dos poucos elementos positivos dessa atmosfera porque tem como lado negativo o fim da moderação e do centro político, na verdade, o que temos assistido nos Estados Unidos nos últimos anos. Trump tem uma base fiel e aparentemente mobilizada - pelo menos nos comícios - na ordem dos 40%.

A base anti Trump é maior veremos se o vai ser nas urnas. Trump tem esse enorme paradoxo: é o líder político mais popular dos Estados Unidos (40-42%) o dobro da popularidade dos líderes democratas ou republicanos no congresso, mas Trump é também o líder político mais impopular com 53% de desaprovação.

Do lado democrata há uma nova onda de candidatos - participação feminina sem precedentes e uma agenda progressista -, mas, desta vez ,uma derrota pode ser mais traumática que a de Clinton em 2016 e comprometer já 2020?

Eu insisto: é preciso ter algum cuidado para fazer extrapolações para 2020. Lembro que os democratas tiveram das maiores derrotas da sua história há oito anos e, dois anos depois, Barack Obama foi reeleito em 2012. Esse cenário poderá, eventualmente, repetir-se com Donald Trump. Não me parece, sinceramente, que a reeleição de Donald Trump esteja em jogo nestas intercalares. De facto, do lado democrata, tendo em conta o que aconteceu há dois anos, era esperado que estivessem agora mais preparados para capitalizar politicamente a impopularidade de Trump. Nos democratas há uma espécie de esquizofrenia política que os faz oscilar entre manter uma herança mais moderada e centrista de Obama e Hillary ou avançar numa via mais esquerdista de Bernie Sanders. Muitos dos afilhados políticos de Sanders ganharam as primárias democratas a candidatos apoiados por Obama e Hillary e isso aponta para uma polarização à esquerda. E é verdade que este vai ser o congresso dos Estados Unidos com mais mulheres, o que é positivo, e as minorias continuam em ascensão no aparelho legislativo e os Estados Unidos são também esta diversidade.

Embora com um Presidente como Donald Trump herdeiro de uma maioria branca ainda resistente à mudança no poder, a verdade é que, ao mesmo tempo, estamos a assistir à emergência de outras minorias e é esse também o lado interessante da América, um país heterogéneo e contraditório.

No livro "Isto não é bem um presidente dos Estados Unidos", defende-se que Trump é um factor de disrupção. Há surpresas para a segunda parte do mandato?

A verdade é que Trump está a cumprir e isso não é bom. Porque, em dois anos, estabeleceu novos "lows", novos recordes negativos, novos limites negativos para a política norte-americana. Ainda hoje, dois anos depois, resulta estranho para mim olhar para Trump e vê-lo como Presidente norte-americano. É uma perplexidade.

Este livro é uma confissão de uma perplexidade. Faço um "statement" no título. É, realmente, um título provocador. Trump é o Presidente dos Estados Unidos e isso não está em causa. Mas não é bem "o Presidente dos Estados Unidos" pela forma como se comporta, pela forma como pisa os seus poderes presidenciais, não respeitando outros poderes, e como assume constantemente bodes expiatórios nos media, no poder judicial, nos adversários políticos e, ás vezes, no seu próprio partido. A culpa nunca é dele.

Não é "o Presidente dos Estados Unidos" na forma como destrata aliados permanentes dos Estados Unidos e se aproxima de forma desconcertante de ditadores ou de líderes autoritários, refazendo a forma como olhamos para os Estados Unidos como um farol de referência democrática e de liberdade.

Mas os “checks and balances” do sistema não têm funcionado para impedir excessos?

No essencial, sim, mas só na parte mais dramática e extrema. No "travelban", foram os juízes a não deixar que o Presidente desrespeitasse a Constituição e a não permitir que Trump avançasse com a lei. Depois de alguns dias de perturbação nas fronteiras nos aeroportos e tribunais, a decisão dos juízes foi positiva. No entanto, tem havido crescentemente a noção de que alguns poderes podem estar em causa. A forma como a maioria republicana no congresso está a conseguir travar as investigações da comissão Mueller - embora a comissão tenha já produzido acusações fortes - é um exemplo.

No caso das cartas armadilhadas contra elementos do Partido Democrata, é verdade que o sistema funcionou de forma perfeita, muito rápida, protegendo as pessoas. Os serviços secretos estão completamente blindados a qualquer tipo de interesse político mais obscuro. Mas, na verdade, há uma atmosfera de anormalidade. Este episódio das cartas armadilhadas prova isso. Ou seja, o Presidente não pode ser directamente responsabilizado, mas olhando para os alvos das cartas, objectivamente um apoiante de Trump passou das palavras às acções. Nesse aspecto, há uma perturbação americana.

Tomando por exemplo a caravana de hondurenhos, um Presidente republicano pode responder a este desafio de outra forma da de Trump? (com excepção da frase "se apedrejados respondam com tiros")

Acho que pode. Essa retórica é importante para se perceber uma certa forma de comportamento em sociedade. Se o Presidente trata assim essas pessoas, ele está quase a legitimar que outros cidadãos o façam. Isso não é a América. A América cresceu pela integração e absorvendo outros povos.

Mas, realisticamente, a América pode agora abrir a porta a 30 mil centro-americanos?

Não é o caso. Não são 30 mil. Essa caravana, neste momento, estará com 14 mil e estima-se que só três mil possam chegar à fronteira dos Estados Unidos com o México e desses só mil a 1.500 reúnam condições de obter um estatuto de asilo que, de alguma forma, permita a sua entrada na fronteira norte-americana. Nesse grupo, há muitas mulheres e muitas crianças. Portanto, olhando para os factos, é rídícula essa ideia de grande invasão de gangues violentos muito perigosos que pusessem em risco a segurança nacional. Agora, do ponto de vista da percepção dos factos, Donald Trump joga com esse dado como ninguém.