Circuncisão por motivos religiosos ameaçada na Europa
08-08-2018 - 13:40
 • Filipe d'Avillez

A tentativa de proibir a circuncisão leva judeus e muçulmanos a sentirem-se marginalizados nos países em que vivem. Será preconceito, ou ignorância sobre a importância da religião que move quem quer banir a prática?

Leia também


A circuncisão masculina é um preceito religioso fundamental para judeus e muito importante para muçulmanos. No caso dos judeus, a prática tem milhares de anos.

Atualmente, nenhum país no mundo proíbe especificamente a circuncisão por motivos religiosos, mas isso poderá mudar. Políticos na Islândia já disseram que querem ser o o primeiro país a vedar a prática, mas têm concorrência na Dinamarca, onde uma proposta nesse sentido deu entrada no Parlamento.

Já em 2012, um tribunal estadual alemão proibiu o procedimento, provocando imediatamente comparações ao regime nazi, mas o tribunal federal anulou a decisão e o Governo acabou por aprovar uma lei que legaliza explicitamente a circuncisão religiosa.

Os defensores da proibição da circuncisão dizem que esta, quando praticada por razões não-médicas, viola a integridade física dos rapazes.

Embora alguns façam paralelos com a chamada circuncisão feminina, as duas não são verdadeiramente comparáveis. No caso dos homens, a amputação do prepúcio não parece ter efeitos negativos para a saúde - havendo, inclusivamente, estudos médicos que apontem vantagens - nem para a vida sexual. No caso feminino, a excisão genital - ou mutilação genital feminina (MGF) - tem efeitos negativos para a vida sexual e, porque é quase sempre praticado de forma clandestina, causa graves problemas de saúde a algumas das suas vítimas. Acresce que, embora a MGF seja praticada por muitas comunidades islâmicas, não existe qualquer mandato religioso neste sentido e algumas comunidades cristãs e animistas em África também sujeitam as suas mulheres a essa prática.

Embora a questão da circuncisão masculina possa parecer secundária para a maioria dos cristãos ou pessoas sem filiação religiosa, na Europa, para os muçulmanos e, sobretudo, para os judeus que vivem nessas sociedades, trata-se de uma questão fundamental e a sua eventual proibição é entendida como um ato hostil que diz que não são bem-vindos naqueles países.

Quando a lei começou a ser debatida na Islândia as comunidades reagiram de imediato. “Para eles este é um assunto muito grave, porque para os judeus a circuncisão é obrigatória ao oitavo dia de vida, é talvez a única prática que é comum a todas as comunidades judaicas. Para eles não é sequer opção”, explica o padre Jakob Roland, um sacerdote francês que trabalha na Islândia.

Enquanto secretário-geral do Forum Inter-religioso naquele país, o padre Jakob organizou uma conferência para chamar atenção para o problema e lamenta que os políticos que fizeram a proposta nem sequer tinham tentado contactar as comunidades religiosas que seriam afetadas. Há alguns milhares de muçulmanos no país, e uma comunidade judaica que se estima entre as dezenas e as duas centenas, mas que não está organizada, tendo a sua defesa sido assumida por organizações judaicas europeias.

“Não vejo qualquer sinal de que tenha havido contacto com a comunidade muçulmana, e não houve de todo com os judeus. Quando a responsável pelo projeto soube da reação dos rabinos na Europa disse, no Parlamento, que tinha ficado muito surpreendida com isso. É estranho, porque se alguém iria reagir eram os rabinos”, comenta o padre, sublinhando que a lei a ser discutida prevê uma penalização de seis anos de cadeia.

Preconceito ou ignorância?

A surpresa da deputada levanta uma questão importante. As medidas que visam proibir a circuncisão por motivos religiosos e, mais ainda, o abate ritual de animais para consumo segundo normas religiosas, que também afeta judeus e muçulmanos, são motivadas por preconceito antirreligioso, ou por genuína preocupação pelos direitos das crianças e dos animais? Um olhar pelos diferentes projetos na Europa apresenta resultados distintos. Mas o padre Jacob não duvida que na Islândia não é qualquer sentimento antissemítico que anima este debate, é antes uma total incompreensão pela importância que a religião tem na vida de algumas pessoas.

“Há muita ignorância sobre assuntos religiosos aqui. A maioria dos islandeses são cristãos, um terço deles são da Igreja Luterana, que é a Igreja do Estado, mas muito poucos compreendem bem a sua religião ou praticam-na com regularidade. Para eles a religião é completamente secundária e por isso têm dificuldade em compreender que para outras pessoas a religião possa ser um aspeto importante e essencial das suas vidas”.

O problema, diz o padre católico, começa bem cedo. “Nas escolas geridas pela cidade de Reiquejavique já não se ensina religião. Isto leva a que haja toda uma geração que cresce sem qualquer noção sobre a religião. Vão para Roma de férias, olham para a Pietá e perguntam quem é esta mulher com um homem morto nos braços. Não sabem nada sobre religião.”

No caso da Islândia, como em todos os outros que têm ocorrido na Europa no que diz respeito a ataques à legalidade da circuncisão e do abate ritual de animais para consumo, a Igreja Católica tem estado firmemente ao lado da defesa do direito dos muçulmanos e dos judeus de poderem praticar as suas religiões sem impedimentos. “O nosso bispo escreveu uma carta em que explica que os cristãos insistem mais no aspeto espiritual da circuncisão, como diz São Paulo, da conversão dos corações e não da circuncisão física. Em todo o caso, diz, é uma questão de liberdade de religião e apoiamos estas comunidades”, explica o padre Jakob.

Mas nem tudo é mau. Na Islândia, tal como aconteceu noutros países europeus em que estes assuntos estiveram sobre a mesa, a ameaça comum levou a um estreitamente de relações entre judeus e muçulmanos, duas comunidades que, no contexto mundial atual, nem sempre têm relações de confiança. No caso islandês, a melhoria de relações foi até mais longe. “O Fórum Inter-religioso existe há quase 12 anos e o diálogo inter-religioso nunca alcançou um grau tão profundo de amizade e de diálogo como agora”, insiste o padre.

“Hoje até há pessoas que usam a palavra ‘amor’ para descrever a nossa relação. Nunca tínhamos experimentado isso antes.”