​A geração dos nossos filhos poderá ser a mais intolerante
11-01-2019 - 06:57

As pessoas nascidas e criadas neste século no ocidente poderão formar a geração mais intolerante de que há memória. Estou a exagerar? Não.

Os indicadores da intolerância crescem de ano para ano. Se pensarem no clima intelectual de 2008 (quando foi possível chegar a consensos sobre a crise), vão descobrir uma atmosfera que parece ser literalmente de outra era. Perdemos liberdade, tolerância e empatia a cada ano que passa. Não acreditam em mim? Então leiam ou oiçam por favor o psicólogo social Jonathan Haidt. Não vão encontrar nada melhor sobre o nosso ar do tempo.

Haidt explica que a actual intolerância das nossas sociedades e até universidades tem como causa algo mais profundo do que a ideologia do politicamente correcto ou a ideologia nacionalista. A questão não é ideológica, é epistemológica, é conceptual, talvez até neurológica. Haidt comprova com estudos e dados algo que muitos de nós já intuíamos: é como se os nossos filhos fossem de outro universo moral. Não estamos a falar do mero choque entre gerações. Estamos a falar de uma ruptura civilizacional, que começa na infância e na própria concepção de "criança".

Falo aqui muitas vezes das brincadeiras de rua, que se perderam. A rua é hoje dos carros, não das crianças. Isto não é nostalgia pelo passado, é nostalgia pelo que está certo. A este respeito, Haidt sublinha uma variação civilizacional de fundo: até à geração dos nossos filhos, todas as gerações de seres humanos aprenderam a arte da socialização na rua, em brincadeiras com outras crianças sem adultos por perto. Durante milénios, os homens aprenderam a discutir, a argumentar, a chegar a consensos e a acordos logo na infância. Antes dos dez anos, todos nós sabíamos que não éramos o centro do mundo, que existiam outras pessoas com outras ideias que tínhamos de ter em conta. O pluralismo estava no próprio ar que respirávamos. A tolerância (isto é, aceitarmos a presença de algo de que não gostamos) fazia parte da educação da rua, do pátio, do descampado, de ringue de jogos.

livro, geração, raposo. Entre meados dos anos 90 e início deste século, algo mudou na psique colectiva dos pais. Uma série de factores (o fantasma da pedofilia e dos abusos, a colonização da rua e dos passeios pelos carros e pelos cães, as fobias médicas e alimentares) construiu um ar do tempo que leva a este ridículo salientado por Haidt: alguns pais são presos porque deixam os filhos sozinhos num parque. Eu ia para a escola sozinho com sete anos. Se deixasse a minha filha fazer o mesmo, eu seria, no mínimo, sinalizado pela proteção de menores. As crianças passaram a brincar apenas e só em ambientes controlados pelos adultos, ou seja, deixaram de aprender a resolver as diferenças de opinião sozinhas. E, se não aprenderam a tolerância na rua, também não a aprenderam em casa, pois são muitas vezes filhos únicos – outra marca do nosso tempo.

Estas crianças cresceram e agora estão nas faculdades e entrar na vida adulta. Problema? A criança que não aprendeu a resolver sozinha as diferenças com outras crianças é agora o jovem adulto que não sabe aceitar opiniões contrárias à sua, é o jovem adulto que não sabe debater ou trocar ideias e cuja reacção instintiva à diferença de opiniões é o boicote, a queima de livros, o insulto, a chamada do pai (autoridade) para mandar calar os outros. A liberdade de pensamento é literalmente ofensiva para o jovem desta geração. A intolerância é onde se sente confortável, porque nunca foi forçado a confrontar-se com a liberdade dos outros. Na infância não teve rua e irmãos. Na adolescência teve direito a um telemóvel e a redes sociais onde criou a sua bolha. A própria ideia de uma discussão de ideias é perturbadora. É como se as ideias só pudessem ser linhas paralelas, correndo lado a lado sem nunca se cruzarem. Perguntar é ofender. Criticar é ofender.

Imaginem que só permitíamos que os jovens começassem a aprender a ler aos 15 anos. Isso representaria um óbvio atraso na aprendizagem técnica da linguagem. Ora, o que se passa hoje é um atraso na aprendizagem moral da liberdade, da empatia, da tolerância. A arte da associação ou a civilidade era algo que nós aprendíamos logo com sete ou oito anos. Agora isto é aprendido apenas aos 20 ou 30. E, em muitos casos, não o será mesmo. Esta não é uma questão de lifestyle. Esta não é uma questão de mamãs e papás. É uma catástrofe civilizacional que só agora começa a ter contornos claros.