Dívida: a estraga-prazeres
20-11-2016 - 16:12
 • José Bastos

Contágio Trump na semana dos indicadores económicos positivos? “Os credores não recebem notícias apenas de Costa, Marcelo e Moscovici”, diz Álvaro Almeida.

O Commerzbank não confirma que mais dois leilões de obrigações, com maturidades em Outubro de 2022 e Julho de 2026, possam ter lugar na semana que agora começa. A acontecer, será mais uma oportunidade para se avaliar a tendência de subida dos juros da dívida pública portuguesa – mais evidente no prazo a 10 anos – a preocupar a Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP).

Afinal a economia acelera, não há sanções de Bruxelas, o défice baixa e para estragar uma semana quase perfeita (ainda há a CGD) os juros da dívida pública portuguesa dispararam encostando na quinta-feira nos 3,76% (o spread face à Alemanha ficou nos 3,50%).

Valores acima de 3,7% são um máximo de nove meses nos juros a 10 anos do mercado secundário. Se a tendência se consolidar as taxas podem beirar o máximo do ano (Fevereiro) acima de 4%.

A tendência explica-se apenas com a conjuntura internacional e com a vitória de Donald Trump? Tem a ver, mas não só, na análise de Álvaro Santos Almeida.

No Conversas Cruzadas o economista sublinha que os juros de países periféricos como a Espanha, Itália e Alemanha não sofreram o mesmo agravamento porque os mercados têm menor grau de desconfiança.

“Os juros da dívida estão a subir porque os credores não recebem as notícias apenas da boca da dupla Costa/Marcelo como acontece em Portugal. As coisas só estão bem para quem recebe as notícias por esta via. Aliás, agora passou de dupla a tripla porque o senhor Moscovici também ajuda à festa”, afirma Álvaro Santos Almeida.

“Por exemplo, a suposta ‘brilhante’ aprovação do Orçamento do Estado pela Comissão Europeia se lido o documento - tenho a mania de ler os originais e não ligar aos títulos ou frases do primeiro-ministro - conclui-se que nada está aprovado. O relatório da Comissão assinado pelo sr. Moscovici diz explicitamente que o Orçamento não cumpre com o Pacto de Estabilidade e Crescimento”, diz o antigo quadro superior do FMI em Washingon.

“Diz que a Comissão convida as autoridades portuguesas a tomar as medidas necessárias para que o OE 2017 cumpra com o PEC. Refere que a Comissão é da opinião que Portugal não fez progressos relativamente à parte estrutural e, no caso das recomendações específicas, até retrocedeu. Este é o documento divulgado pela Comissão Europeia na quarta-feira passada”, prossegue Álvaro Santos Almeida, numa análise situada nos antípodas do discurso do Comissário Pierre Moscovici, sexta-feira, em Lisboa.

Álvaro Almeida: “Os mercados vão ler os originais”

“O problema é que o diz o socialista Moscovici não é propriamente matéria de interesse para os mercados. Não nos esqueçamos que Moscovici foi ministro das finanças da França, não propriamente um grande exemplo europeu nesta área orçamental. Não sou só eu a ler os documentos originais. Os mercados também vão ler os documentos originais e aquilo que viram foi um Orçamento que não cumpre com os princípios do Tratado Orçamental”, observa.

“Os mercados vão ler uma análise que refere o atraso das reformas estruturais. Portanto é um retrato que não é minimamente favorável a Portugal. Mesmo as notícias do crescimento são um atestado de incompetência ao governo de António Costa. O nosso governo assentou - e diz isso expressamente no OE 2016 - a sua estratégia no crescimento da procura interna através da reposição dos rendimentos. Essa era a estratégia”, sublinha Álvaro Santos Almeida.

“O que aconteceu agora no terceiro trimestre de 2016? A procura interna baixou. O crescimento económico assentou, apenas e só, nas exportações de bens e serviços. É exactamente o contrário da estratégia do governo”, diz o professor de economia da Universidade do Porto.

“Mas isso é bom”, contrapõe o economista Luís Aguiar-Conraria, mas Santos Almeida insiste: “É bom, mas é um atestado de incompetência ao governo. Não é por causa do governo que as exportações cresceram. Não é por causa da reposição de rendimentos que a economia cresceu”, nota.

Luís Aguiar-Conraria: “Retórica foi ‘galambice’ para parte do PS”

Luís Aguiar-Conraria diz perceber a retórica política, mas sublinha que o dado positivo é o crescimento da economia. “Sobre esta matéria tenho uma perspectiva diferente. Tenho uma teoria diferente em relação ao programa do PS. Acho que o programa original, antes das eleições - o cenário macroeconómico dos 11 economistas - tem muito essa retórica de devolução de rendimentos, de 'vamos crescer pelo consumo' e por aí fora, mas, de facto, os economistas que conheço e que fazem parte do grupo, não é nisso que acreditam”, diz o professor de economia da Universidade do Minho.

“Portanto, penso que essa retórica é uma espécie de "galambice" de que precisam e foi necessária para convencer determinadas franjas do PS”, diz Luís Aguiar-Conraria.

“Mas aqueles economistas a sério que estão no grupo como Manuel Caldeira Cabral ou Mário Centeno sabem que não é esse o crescimento saudável de que o país precisa. Portanto não imagino Manuel Caldeira Cabral ou Mário Centeno chateados com esta notícia de que, afinal, o crescimento fez-se pelo lado das exportações”, diz.

“Pelo contrário, de certeza que estão muito contentes por isso. Percebo a parte da retórica política e que os dirigentes do PSD apontem baterias ao facto do 'ok o crescimento, ao contrário do que nos disseram não é pelo consumo'. Está bem, mas eu diria que o crescimento é bom”, remata Luís Aguiar-Conraria.

Álvaro Santos Almeida volta à carga: “É bom, mas é sinal do que nos venderam é apenas, usando a expressão, apenas 'uma galambice' e nada tem a ver com o célebre e rigoroso cenário macroeconómico que nos propuseram. Andaram-nos a vender gato por lebre. É isso basicamente que estás a dizer”, afirma dirigindo-se a Luís Aguiar-Conraria.

“É por causa disso que aparecem fenómenos como o sr. Trump. Quanto passamos a achar normal que nos mintam descaradamente. É por causa disto que as pessoas ficam descrentes da política”, afirma Álvaro Santos Almeida.

Luís Aguiar-Conraria objecta: “Agora aqui queria usar o mesmo argumento usado há pouco. Também fui ler o programa para a década dos economistas do PS e realmente parte da retórica está lá, mas está lá muito do resto”, conclui o economista.

Manuel Carvalho da Silva: “Não andemos só à procura do diabo”

Já o sociólogo Manuel Carvalho da Silva junta-se ao debate propondo o que defende ser uma leitura mais abrangente. “O Álvaro Santos Almeida e o Luís Aguiar-Conraria são ambos economistas, mas a leitura do comportamento da sociedade não é apenas feita pela cartilha da economia e muito menos por 'uma' cartilha da economia com visão única das políticas. A sociedade comporta-se em função de múltiplos factores que não apenas a economia e com reflexos na economia”, refere o professor da Universidade de Coimbra.

“O que foi dito - e acho que Álvaro Santos Almeida também o disse - foi que as políticas seguidas pelo governo iam ser uma desgraça porque faziam baixar as exportações. Portanto é preciso fazer hoje uma leitura positiva, não andemos só à procura do diabo ou das ameaças do diabo”, diz Manuel Carvalho da Silva.

Álvaro Santos Almeida rebate. “Pois, mas os mercados é que não vão nisso. Esse é que é o diabo. Os mercados não acreditam nisso”, diz o antigo quadro superior do FMI .

Manuel Carvalho da Silva opta pelo balanço dos últimos dias. “Tivemos um conjunto de notícias e de indicadores positivos. É importante e positivo o que aconteceu. Devemos registar e valorizar, porque ajuda a criar dinâmicas na sociedade, mas devemos continuar de pés assentes na terra. Todos nós e em particular o primeiro-ministro”, nota o sociólogo.

“Em particular, ver se a tendência do crescimento económico se consolida. É preciso ver se a evolução da taxa de desemprego. Mas, entretanto, é necessário encarar um problema de fundo: a prisão da dívida, os encargos que temos com o serviço da dívida. A partir daí vamos ver se o BCE mantém as mesmas políticas ou se tem alguma inversão. Ver qual a atitude do BCE perante o sistema financeiro português. O futuro da caixa Geral de Depósitos também está associado à atitude do BCE. Ver também como evoluem, no plano europeu e no plano mundial, as taxas de juro”.

“Depois, há campos importantes a equacionar: como conseguir mais investimento público, como gerir bem o quadro 20/20, como trabalhar o turismo na perspectiva de que o turismo continuará a ser uma área muito importante. Também é tempo das políticas do trabalho e em particular da área da saúde terem mais espaço na agenda política”, refere o antigo líder da CGTP.

“Os últimos indicadores dão força ao primeiro-ministro na frente doméstica e no plano internacional e tornam a sua posição mais confortável. Em relação às exportações já agora acrescente-se: se não fosse o problema do petróleo e a situação de Angola o crescimento ainda tinha sido mais significativo” .

“Julgo que é preciso continuar a reforçar o consumo interno por necessidades objectivas da sociedade e também porque vai ter efeitos positivos na economia”, remata Manuel Carvalho da Silva.

“O que não se pode é criar aqui a ideia de que uns estão a favor de umas coisas e outros de outras. Não a economia é isso tudo e a sociedade é muito mais”.