Católica e homossexual, Carolina vive entre comunidades de costas voltadas
23-08-2023 - 07:00
 • João Carlos Malta (texto), Ricardo Fortunato (imagem)

Filha de catequistas, Carolina foi educada para ser católica. Seguir as normas da Igreja. Ela quis muito percorrer o caminho que lhe desenharam. Mas a adolescência trouxe as dúvidas. Primeiro as roupas, depois o cabelo, e de seguida a forma como olhava para as raparigas. A tensão entre o que era e o que queriam que fosse não mais parou. A resposta dela “é o amor”.

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O corpo de Carolina Moutela não esconde as duas marcas mais profundas da sua identidade. Olhamos para o brinco e vemos uma cruz. No peito, não passa despercebido um crachá com as cores do arco-íris. Se repararmos no braço, observamos uma tatuagem onde se lê: “Deus é amor” . Mais abaixo, as meias têm inscrito um garrafal “LOVE” com o simbolismo cromático que mais uma vez remete para a orientação sexual.

A vida entre estas duas comunidades, a maior parte das vezes de costas voltadas, marca-lhe o dia a dia. Como se nunca fosse completamente aceite em nenhuma delas.

No Jardim da Estrela, em Lisboa, Carolina, 26 anos, foi voluntária da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), que decorreu de 1 a 6 de agosto. Ali ajudou a criar todas as condições para que um grupo de 11 padres e irmãs francesas pudessem ter momentos de introspeção e de confissão em pequenos grupos de três a quatro pessoas. Os dias do maior evento já realizado em Portugal foram feitos a servir, algo que, garante, resulta da educação cristã que lhe moldou a forma de ser.

Todos mesmo?

É dali que olha e pensa sobre as palavras de inclusão do Papa Francisco, proferidas um dia antes, que se celebrizaram no grito TODOS, TODOS, TODOS”. E é ali que também se dececiona com a realidade ao detetar contradições entre a palavra e a ação.

Carolina revela-se triste com os casos de discriminação que se foram conhecendo ao longo da JMJ. “Aquilo que me dói, nestas Jornadas, é que tem sido todos os dias difícil de lidar [com o que vai acontecendo]. Penso que já vi tudo e todos os dias tem sido uma chapada ”, lamenta.

Aponta o caso da pessoa trans que hasteou a bandeira e foi criticada e assediada por outros jovens na Colina do Encontro ou a celebração dirigida à comunidade homossexual interrompida por um grupo de pessoas que entraram na Igreja de Nossa Senhora da Encarnação, na Ameixoeira. Empunhavam crucifixos e rezavam alto. A situação só foi resolvida com a intervenção da PSP.

“Quando é o próprio Papa que diz que todos têm lugar na Igreja, a verdade é que não é isso que acontece. Isso deixa-me realmente triste e frustrada porque todos pregamos que o amor está acima de tudo . É esse o meu sentido e o meu propósito de vida: amar a Deus é servir e ter amor pelo outro , independentemente de quem seja a pessoa, de onde ela vem e o que está à procura”, sustenta a jovem que trabalha num centro de logística, nos arredores de Lisboa.

Mas este paradoxo é algo que já teve, muitas vezes, de processar interiormente ao longo da vida. Nem sempre da forma mais fácil.

As respostas ao aparente paradoxo

Hoje, lida com o assunto com maior segurança, mas nem sempre foi assim. A jovem conta como atingiu uma certa paz interior. “Deus fez-nos à sua imagem semelhança, Deus sabe quem sou antes de eu falar. Ele sabe aquilo que eu vou dizer, então Deus sabe, muito antes de eu saber, que eu sou lésbica ”, avança.

Isso, garante, dá-lhe uma “certeza gigante para continuar a viver e para começar a fazer um caminho lado a lado com a Igreja”.

Tem consciência plena que entre os católicos nem todos a percebem. “ Eu tenho esta verdade comigo porque Deus é amor e eu sou uma pessoa de amor ”, sublinha.

“Portanto, não vou deixar que ser lésbica signifique que eu não possa mais estar em conjunto com o amor que é a Igreja e que é aquilo em que eu acredito”, resume.

Carolina sabe que a Igreja, enquanto instituição, “é feita por pessoas”. “E há pessoas boas e há pessoas más”, sublinha. Em relação aos que não a aceitam diz apenas: “ Não são Deus nem são Jesus, são apenas pessoas.

O guião não batia certo

Mas nem sempre foi assim. Filha de catequistas, Carolina, aos 12 anos, começou a perceber que nem tudo batia certo com o guião que os pais, e todos os que a rodeavam, tinham escrito. Começou por ser a forma de vestir que não coincidia com as meninas da idade dela. Pouco depois, percebeu que não gostava de rapazes como a maioria das amigas. Tornou-se aquilo que os outros catalogam de “maria rapaz”.

“Nessa altura, nem sabia o que significava a palavra 'lésbica'”, lembra. A imagem que tinha, em Estarreja, dos homossexuais era a de pessoas que “bebiam e fumavam muito” . Na mente de uma adolescente, isso é o gatilho para que o medo se apodere do dia a dia.

“O medo foi precisamente de não ser aceite pela Igreja. Para mim, era mesmo muito importante ser aceite pelas pessoas que me rodeavam”, concretiza.

Esses medos radicavam no que sempre tinha ouvido como sendo a verdade e logo de seguida surgiam as perguntas: “ Deus fez o homem, fez a mulher, e porque é que eu não me sinto assim? O que é que há de errado comigo? ”, questionava.

Anos de muito sofrimento

Durante muitos anos, aquelas dúvidas perduraram. Para ela, à época, tendo de optar, escolheu viver dentro daquilo que entendia como as normas cristãs tradicionais. Durante cinco ou seis anos, ainda tentou esconder-se de si. Ser quem não era. “Cheguei a namorar com rapazes”, revela.

A relação com os pais foi, nessa época, muito sofrida. As conversas à mesa eram pontuadas por muitas lágrimas. A mãe questionava-se onde tinha errado na educação de Carolina. “Foi mesmo uma altura muito difícil. Chorávamos muito, nós discutimos muito”, recorda.

Esses anos marcados por muito sofrimento interior tinham um bálsamo anual: um retiro com freiras, em que se sentia acolhida, compreendida. Uma história que acabou, mais tarde, em desilusão, quando, anos mais tarde, aquelas que eram um porto de abrigo a rejeitaram também.

“Houve um campo de férias, quando tinha 18/19 anos, em que não me deixaram participar devido à minha orientação sexual ”, explica.

É nessa altura que desiste de reprimir o que sentia. Muda a sua expressão de género. Passa a vestir roupas mais masculinas e corta o cabelo. Essa realidade ainda hoje “é difícil de aceitar pela família”. Na mesma época, assume “ser lésbica”.

Passa a olhar para o passado como uma “farsa”. Nesse processo de poder assumir as duas identidades que habitavam o seu interior muito contribuiu um campo de jovens católicos que na época frequentou.

Na primeira roda de conjunto, em que ficou a conhecer os outros participantes, encontrou um rapaz que percebeu de imediato que como ela também não era heterossexual. Ajudou-a a perceber que não estava sozinha. E uma rapariga mais nova, mas muito habituada a conviver com pessoas LGBT, passou os dias daquele retiro a repetir: “ Deus é amor e ele aceita-te como tu és, porque Deus é amor .”

“Foi muito importante para mim”, frisa. Esse evento teve um terceiro marco. Um padre que a conhecia desde pequena - tinha feito a preparação do batismo com ela e os pais - está naquele local. Ela escolhe-o para a confissão e diz-lhe que não aguenta mais não se assumir.

“Não aguento mais não ser eu própria e ter que fingir ser uma coisa que não sou”, disse-lhe. Do outro lado, ouve que Deus a ama como ela é.

Nunca esquecerá o momento que marca um "antes" e um "depois". Deixou de ter medo. Afirma que nunca foi tão feliz na vida. Quis ser quem é em plenitude. Aqui e ali, isso ainda lhe traz dissabores.

Vive em cada uma das comunidades, relata, com um “pé dentro” e um “pé fora”. Afirma que quer em cada momento da sua vida “ ser eu mesma enquanto pessoa católica e enquanto pessoa lésbica ”.

Na Igreja, devido à sua expressão de género, já poucos a questionam. Ela também diz evitar situações que a deixem desconfortável. “Se as pessoas aceitarem, ótimo; se não aceitarem, ótimo na mesma. Eu não preciso da aceitação de ninguém especificamente”, concretiza.

No outro lado, na comunidade LGBT, assume que é difícil defender “uma ideia de amor e de aceitação da Igreja Católica”. Sobretudo quando é confrontada com a questão dos abusos sexuais ou da abertura da instituição a todas as orientações sexuais com todas as demonstrações práticas contrárias a essa ideia.

Em muitas situações é questionada com a pergunta: ”Como é que continua a fazer parte desta Igreja?”

Ela responde: “ A Igreja que é negativa, muda-se e nós estamos a fazer esse caminho de mudança (…) Tudo aquilo que está a acontecer na Igreja é fruto de um caminho de dois mil anos. Eu não vou mudar um caminho de dois mil anos, mas eu posso mudar um caminho, se calhar de 20, 30, 50 anos. Essa é a minha ideia, fazer comunidade e perceber que onde quer que eu vá e onde quer que eu esteja, as pessoas vão ter sempre o melhor de mim. Enquanto Carolina lésbica, enquanto Carolina católica, enquanto Carolina pessoa.”