Francisco: Um novo estilo de ser Papa
13-03-2023 - 06:00
 • Aura Miguel

A descontração do primeiro Papa jesuíta da história manifestou-se logo no dia seguinte à sua eleição, ao sair de surpresa do Vaticano, num carro utilitário, para ir rezar à padroeira de Roma, na basílica de Santa Maria Maior. Nestes dez anos, Francisco enfrentou com mão firme um conjunto de dossiês difíceis, sobre abusos do clero, corrupção e fraudes financeiras.

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Naquela tarde de 13 de março de 2013, ao escolher o nome “Francisco” e, ao surgir na varanda da basílica de São Pedro, apenas com batina branca e sem as habituais vestes vermelhas pontifícias, Jorge Mario Bergoglio inaugurou um novo estilo de ser Papa, pedindo a todos para rezar por ele.

“Sabeis que o dever do Conclave é dar um bispo a Roma. Parece que os meus irmãos cardeais foram buscá-lo no fim do mundo, mas estamos aqui”, disse o novo pontífice com sotaque argentino.

A descontração do primeiro Papa jesuíta da história manifestou-se logo no dia seguinte, ao sair de surpresa do Vaticano, num carro utilitário, para ir rezar à padroeira de Roma, na basílica de Santa Maria Maior. Antes de regressar ao Vaticano, Bergoglio foi pagar pessoalmente o seu alojamento na Casa do Clero, no centro histórico de Roma, onde tinha permanecido nos dias que antecederam o Conclave. Igualmente significativa foi a sua decisão em passar a residir na Casa de Santa Marta, uma hospedaria destinada a bispos, abdicando, assim, do secular Palácio Apostólico onde sempre viveram os seus antecessores.

Uma “Igreja em saída”

“Eu pergunto: quantas vezes, na Igreja, Jesus bate à porta do lado de dentro para que O deixemos sair, a anunciar o reino? Por vezes, apropriamo-nos de Jesus só para nós e esquecemo-nos que uma Igreja que não está em saída, que não sai, mantém Jesus preso”, disse o Papa na entrevista exclusiva que concedeu à Renascença, em setembro de 2015. “Se uma igreja vive fechada em si mesma, adoece e ficamos com uma igreja raquítica e sem criatividade. Ora, entre uma igreja doente e uma igreja acidentada por ter saído para a rua, prefiro uma acidentada”, acrescentou.

Francisco quer uma "Igreja em saída”, ao encontro de todos, sem excepção, com especial preferência pelos pobres, descartados e indefesos. Exemplo disso, foi a decisão de celebrar a missa do lava-pés da primeira 5ª feira santa, poucos dias depois de ser eleito, numa prisão juvenil, bem como a sua primeira visita fora de Roma a Lampedusa, para chamar a atenção do mundo para a tragédia dos refugiados migrantes.

Entre as 40 viagens que já realizou, incluindo a Fátima no centenário das aparições, são poucos os países da Europa visitados durante estes dez anos. Francisco prefere países de minoria católica e aposta no diálogo, fora e dentro cristianismo, como aconteceu na Terra Santa, ao rezar no muro das lamentações e também junto ao muro que separa Israel da Palestina.

Foi também em espirito de paz que visitou e rezou em Auschwitz e foi com o mesmo espírito que visitou o Cairo onde consolidou uma relação de amizade com o grande Imã de Al-Azhar que tem produzido frutos significativos de diálogo. Uma das etapas importantes deste percurso aconteceu em Abu Dhabi, com a assinatura conjunta do Documento sobre a fraternidade humana e convivência social e, mais tarde, com a visita ao Bahrein. É neste âmbito de diálogo que também se insere a visita de Francisco ao Iraque e o histórico encontro com o líder xiita Al Sistani. A encíclica Fratelli tutti (2020) é um reflexo deste incontornável caminho de diálogo e amizade social, aos quais são chamados todos os cristãos.

A inspiradora “Alegria do Evangelho”

O primeiro documento de Francisco, a Exortação Apostólica Evangelii gaudium (“Alegria do Evangelho”, 2013), é um texto profundamente programático deste pontificado. É daqui que deriva o caminho sinodal, atualemente em curso, a reforma da Cúria romana, a maior autonomia dos bispos diocesanos e a nomeação de um conselho de cardeais que ajudam o Papa no governo da Igreja universal.

Também se pode dizer que a Evangelii Gaudium é o motor de arranque que levou à realização dos dois sínodos sobre a família (Exortação Amoris Letitiae, 2016), do sínodo sobre os jovens (Exortação Christus Vivit 2019). E o estilo inconfundível de Francisco também se manifesta na Exortação Gaudete et Exsultatae (2018) ao demonstrar como a santidade no mundo actual está ao alcance de todo e qualquer batizado.

A sua primeira encíclica, Laudato Si (2015), sobre o “Cuidado da Casa Comum" é dedicada às questões relacionadas com a ecologia humana e ambiental. Profundamente inovadora, há quem lhe chame “a encíclica verde” de Francisco. Neste contexto também se insere a Exortação Querida Amazónia (2020), dedicada à realidade social, cultural, celestial e ecológica daquela região amazónica.

Misericórdia sem limites

Nestes dez anos, Francisco enfrentou com mão firme um conjunto de dossiês difíceis, sobre abusos do clero, corrupção e fraudes financeiras. Mas, ao mesmo tempo, gosta de telefonar aos que lhe escrevem a desabafar ou partilhar angústias, almoça frequentemente com sem-abrigo, visita de surpresa lares de idosos e famílias em bairros difíceis da periferia e, de vez em quando, sai à rua para assuntos da vida quotidiana, como já aconteceu para comprar sapatos ortopédicos ou ir ao oculista.

Define-se a si próprio como pecador, pede continuamente para se rezar por ele e dá testemunho da importância da confissão. Francisco não se inibe, à vista de todos (mesmo em transmissões televisivas), de se aproximar de um confessionário e confessar-se ao sacerdote que lá está sentado, para se reconciliar com Deus.

Entre tantos momentos simbólicos, vale a pena recordar no contexto do Ano da misericórdia, a arriscada viagem que fez à República Centro-Africana onde, sem olhar a riscos, abriu solenemente a Porta Santa da Misericórdia, na catedral de Bangui, situada no bairro muçulmano daquela capital, totalmente devastada por conflitos internos.

Momento inesquecível foi também o gesto de grande solidão quando, numa Praça de São Pedro totalmente deserta, em plena pandemia, Francisco carregou sobre si as dores e angústias da humanidade, permanecendo sozinho, junto a Cristo, num dos momentos mais simbólicos deste pontificado.

Interrogado sobre os seus dez anos de pontificado, recusa fazer balanços porque “a Igreja não é uma empresa, nem uma ONG e o Papa não é um administrador.” Numa das muitas entrevistas que concedeu nestes dias, Francisco sublinha que “a Igreja é do Senhor!” e o que lhe é pedido é “ouvir humildemente a sua vontade e colocá-la em prática. Pode parecer uma tarefa muito simples, mas não é. É preciso sintonizar-se com o Senhor, não com o mundo”.