Cova da Moura. O bairro do muro invisível em que os tijolos somos "nós" e "eles"
07-11-2016 - 07:00
 • João Carlos Malta (texto) e Joana Bourgard (fotos)

Uma viagem de duas horas. Setenta pessoas. E um bairro que só conhecem da televisão e das notícias. Das más. Um choque entre "nós" e "eles" em discurso directo. Uma visita guiada ao bairro que o Presidente visita esta segunda-feira.

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À volta da Cova da Moura, na Amadora, existe um muro de betão armado que separa o bairro da cidade. Na realidade não está lá. Mas as imagens de cada notícia que se ouve, de cada história que se lê e de cada reportagem que se vê, vão criando uma realidade em que quem lá vive são “eles” e quem não mora lá somos “nós”.

Cento e vinte minutos de imersão nas ruas do bairro podem não ser suficientes para derrubar preconceitos de décadas, mas pelo menos ajudam a dar outra perspectiva. Setenta pessoas quiseram passar, na semana passada, por essa experiência organizada pela “Outra Lisboa”, iniciativa da Trienal de Arquitectura que organiza passeios pelo lado “invisível” da cidade. Ir à Cova da Moura, o bairro que o Presidente da República visita esta segunda-feira, e ver com os próprios olhos o que a visão de outros lhes contam.

O grupo subiu e desceu ruas ao som das palavras do “guia turístico” Silvino Furtado, da Associação Moinho da Juventude. Dentro do bairro Silvino é também conhecido por “Bino”.

Os visitantes olharam. Foram olhados. E, como se faz nos sítios em que passamos poucas vezes, mas que nos marcam, tiraram-se fotos em cada esquina, a todos os pormenores.

O QUE DIZEM OS TEUS OLHOS?

A subida do planalto começa. As casas com acabamentos toscos encavalitam-se umas nas outras, numa espécie de puzzle em que as peças parecem não encaixar. Nas varandas e nos telhados é quase impossível não reparar nos pratos das antenas parabólicas que se multiplicam. Há milhares de cabos de electricidade a ligar as habitações, uma teia aparentemente desordenada.

Por baixo, as crianças (são tantas, mas tantas, no bairro) não param um segundo. A ginga cabo-verdiana (diz-se que a Cova da Moura é a maior cidade cabo-verdiana fora do arquipélago) e os lenços coloridos nas cabeças das mulheres entram pelos olhos adentro.


A COVA DA MOURA EM NÚMEROS

Nome: A primeira família que habitou naquele local tinha o apelido Moura

Construção: início dos anos 1970

Área: 16 hectares (16 campos de futebol)

Habitantes: entre seis e sete mil

População: 50% dos agregados são de origem africana, sobretudo cabo-verdiana

Habilitações literárias: 10% de analfabetos

Principais problemas: tráfico de droga, tensão entre polícia e residentes

Valor dos terrenos: 100 milhões de euros


Vamos puxar à frente esta história e saltar uns capítulos, directamente para o epílogo, até ao momento em que o grupo se sentou à mesa com os elementos da Associação Moinho da Juventude. Um colectivo com muito trabalho no terreno e repleto de homens e mulheres que nasceram, cresceram e vivem com orgulho o bairro.

Vem à baila a questão da propriedade das casas do bairro, que ainda não está resolvida passados 40 anos desde que a Cova da Moura se começou a erguer. A construção ilegal do bairro faz com que ainda hoje as pessoas não possam reivindicar legalmente a posse das habitações.

A deputada Helena Roseta prometeu levar o caso à Assembleia da República. E surpreendeu-se. “Há aqui um caso de dupla tributação da câmara, no IMI, em relação aos moradores e aos proprietários”, apontou a também arquitecta.

A conversa passou pela dificuldade de diálogo com as entidades públicas para resolver problemas como a construção de uma nova creche, uma necessidade imperiosa para um bairro com tantas crianças e que se tem arrastado no tempo.

A troca de ideias decorria em tom crítico, mas ameno, em jeito de balanço do passeio, até que Godelieve Meersschaert (também conhecida por Lieve), uma belga há mais de 30 anos a morar no bairro, arrasa as representações que o “mundo exterior” constroem da Cova da Moura.

Os meios de comunicação social ficam na mira.

– Nos jornais metem fotografias dos jornais nos anos 90 só para estigmatizar. Quando não há notícias, fazem humor sobre o bairro.

Lieve mostra duas notícias de uma página de humor que o "Correio da Manhã" teve. Nelas lê-se: “Testes nucleares na Cova da Moura" e "Rock in Rio na Cova da Moura".

– As piadas não são nada agradáveis (…)

Uma visitante faz um aparte.

– Mas o humor faz-se com tudo.

Uma outra mulher do público contrapõe. Não concorda com Lieve.

– É a primeira vez que venho à Cova da Moura. E a ideia que tenho é que vocês fazem um óptimo trabalho. A opinião das pessoas que moram em Lisboa e na província já é outra. Até porque as histórias que se vêem já são outras. Por isso, não concordo consigo. [Haver humor sobre a Cova da Moura] é uma boa notícia.

Jackilson Pereira, coordenador da Moinho da Juventude, entra no debate e não se mostra muito crente.

– Espero que essa utopia continue e que as pessoas tenham boas imagens. Mas é só seguir as caixas de comentários [online] das notícias da Cova da Moura e perceber o que é lá dito. E é fantástico, as pessoas têm uma óptima imagem.

Ironiza, claro. Uma das visitantes contra-argumenta.

– É verdade que há uma comunicação social que estigmatiza e faz ressaltar a violência. Mas nos últimos anos há exemplos muito positivos e que contrabalançam essa outra imagem.

O QUE DIZEM OS MEUS OLHOS

Esta percepção não destrói a visão de um dos elementos do Moinho da Juventude mais interventivo nesta discussão. Para Fábio, o humor tem uma visão política.

– O humor tem um corpo político e é uma marcada de posição. Quando se constroem essas narrativas, há um objectivo. Os meios de comunicação têm um objectivo, que pode até ser o sensacionalismo. Mas quando deixam de ser os meios de comunicação social e passa a haver rótulos políticos como "zonas urbanas sensíveis" isso já tem outro impacto.

O tema da conversa salta para o trabalho e como o fenómeno mudou no bairro. A construção civil dominava quase todos os empregos dos homens e as limpezas no caso das mulheres. E daqui segue para a visão que os outros têm. Um jovem que já trabalhou na Moinho da Juventude toma a palavra.

– É difícil falar da Cova da Moura de forma neutra. Ou é banditismo ou as pessoas que trabalham. Mas até aí estamos muitas vezes a falar de trabalho escravo. Uma mulher que sai às cinco da manhã e chega às nove da noite... Muitos dos jovens que aqui vivem não têm documentos e estão em risco de serem deportados. Sem isso, eu não consigo votar, não consigo manifestar-me. Há uma teia que diminui a cidadania.

FRACTURAS

A conversa muda quase definitivamente para o tema do emprego. O ambiente aquece quando alguém pergunta se pôr "Cova da Moura" na morada do currículo ainda é um problema para quem quer encontrar trabalho. A resposta foi imediata.

– Se colocas o endereço, tens 50% de possibilidades de ser excluído da entrevista.

Um arquitecto na plateia mostra-se compreensivo com os argumentos, mas logo sublinha que o problema do emprego não é exclusivo da Cova da Moura.

– Esses "handicaps" existem a nível nacional e europeu. Os jovens em Portugal não têm trabalho, os arquitectos não têm trabalho. (...) É só para terem uma ideia que lá fora, em Lisboa, ou no resto do país não há trabalho. Sou arquitecto e sei do que estou a falar. Os miúdos novos têm de ir para fora. Aqui há problemas, mas o país não está em melhor situação.

Não fica sem resposta.

– Aqui não é o país? Aqui não é o país?

– Aqui também é o país. Mas estamos a falar de duas situações…

– Não temos uma visão limitada que só nós que temos o monopólio da dor. Não temos essa visão.

Ouvem-se risos na sala. O arquitecto ainda argumenta que só está "a dar outra perspectiva". Mas não é aceite.

– Isso é um discurso muito perigoso que os nacionalistas adoram com a questão de quem pertence e não pertence. Quem são os jovens portugueses? Ele [um amigo para quem aponta] é um jovem português e nasceu na Cova da Moura. Tem 35 anos e conseguiu a nacionalidade no ano passado (...) Nós sabemos o que é a austeridade até porque aqui se sentiu antes. A construção civil começou a cair antes, em 2007...

A conversa ainda toma o rumo da falta de investimento público e do desvio de dinheiro que deveria ser aplicado no bairro por este ter o rótulo de "crítico" pelo Estado. Mas volta ao tema da discriminação e dos direitos e deveres entre quem está dentro da Cova da Moura e quem está fora.

Um jovem que já trabalhou naquelas ruas e opera hoje noutros bairros da Grande Lisboa traça o retrato robô do percurso de uma criança que cresce neste bairro da Amadora, olhando para o arquitecto.

– Posso nascer aqui, a minha mãe pode trabalhar montes de horas, vou para a creche, passo tempo sozinho na rua e arranjo um problema. Sou sinalizado pela CPCJ [Comissão de Protecção de Crianças e Jovens] desde pequenino. Vou para a escola e a língua-mãe é o crioulo, metem-me numa escola a que chamam percurso alternativo, que é um programa de ressocialização em que não tenho notas.

A história não caminha para um final feliz.

– Não tenho documentos. Não consigo progredir na escola porque mudo de agrupamento escolar. E como não tenho documentos não consigo entrar no 9.º ano e no 10.º ano. Acontece a muitos jovens.

Fala de uma sobreposição de factores que levam ao insucesso e a tentativa por parte de algumas pessoas de pegar na excepção para dar crédito a certas políticas de integração.

– Depois pegam em alguns exemplos para mostrar que é possível. São os resilientes. E diz-se: "Este levou pancada e conseguiu". Não há direitos nenhuns, mas se estes conseguem vocês também conseguem. É um discurso que muitas vezes ultrapassa a necessidade de haver direitos. E depois apanhamos jovens de 18 e 19 anos a dizer: conseguimos não ser presos.

LÁ, CÁ, DENTRO, FORA

Fim de conversa? Nada disso. O arquitecto volta a carga.

– Isso é tanto aqui como lá.

E ouve de imediato.

– Mas qual lá?

E ele volta a tentar.

– Uma pessoa lá fora que não foi preso, que tem documentos, tem uma série de dificuldades de escalar, burocracias de estado, problemas a nível familiar. São escalas diferentes, mas existe também.

E é contrariado novamente.

– Mas isso não é igual para quem vive na Cova da Moura.

E ele remata.

– Existe para toda a gente.

Ouve de volta.

– A perspectiva da arquitectura é interessante...

Sente o toque e riposta.

– Falei da arquitectura porque durante muito tempo andei à procura de trabalho e trabalhei no país inteiro. E não foi fácil.

Fábio não o deixa a falar sozinho.

– Eu também trabalhei no país inteiro.

O arquitecto solta.

– A vida é difícil.

Fábio não gosta.

– E aqui para a gente da Cova da Moura, como é? É fixe? Não estamos na disputa das olimpíadas da dor. O pessoal sabe da questão da precarização de muita gente. É bom teres esse discurso aqui para ver como algumas cabeças estão.

Ainda há mais uma troca de galhardetes e depois torna-se oficial: não há acordo possível. Fábio diz:

– Não temos de concordar, mas temos de conversar.

Helena Roseta ouviu a troca de argumentos e contextualiza o que acabámos de ouvir.

“Os jovens atravessam um período muito difícil. Já não estamos na 'troika', mas continuam a ter de sair para ter um emprego. E há quem não esteja preparado para ouvir uma história destas, de jovens que, além de todo o contexto do país, têm ainda a carga do bairro”, explica.

Para terminar, a deputada do PS confessa que se sensibilizou quando Fábio disse que os moradores da Cova da Moura não têm o “monopólio da dor”.

Passadas duas horas, estas visitas guiadas, que levam anualmente duas mil pessoas à Cova da Moura, mostram ser uma das picaretas possíveis para deitar abaixo a barreira que faz com que a cidade fique à porta do bairro.