Afiar facas, Agatha Christie e a independência do Sul socialista
05-10-2015 - 02:57
 • João Carlos Malta . Fotos: Mário Cruz/Lusa

A tragédia começou bem antes deste domingo, mas teve nas urnas o desfecho que os gregos na dramaturgia clássica definiram como catástrofe. O PS que pedia maioria absoluta sucumbiu, mas o povo do Altis queria António Costa.

“Não percebemos. O que é que aconteceu? Onde estão os reformados que tiveram cortes nas reformas? Onde estão os pais que viram os filhos partir? Onde estão as famílias que foram obrigadas a perder a casa?” Cristina Vasconcelos e Marlene Collaço, uma funcionária pública e uma professora, estavam atónitas ao ver os resultados que todas as televisões insistiam em repetir. Elas acreditaram até ao fim, contra tudo e contra as sondagens, mas este domingo acabou o sonho. E com estrondo.

Os socialistas entravam no momento do “pathos” (situação desesperante).

Mas este não era o estado de espírito de todos os que se deslocaram à sede de campanha do PS, no Hotel Altis, em Lisboa. Um grupo de sete socialistas, duas mulheres e cinco homens, ia matando a ansiedade com algumas piadas sarcásticas. Talvez para aliviar a tensão. Um dos homens do grupo lançou a primeira farpa: “Isto hoje ainda vai ser um filme como os da Agatha Christie, com o título ‘Quem matou o Costa’”. Risos.

Uma das companheiras embaladas na sátira respondeu logo: “Já viste que não está cá ninguém conhecido? Estão todos a afiar as facas”. Mais risos.

A conversa resvala para o futebol – um clássico quando é necessário desanuviar. Mas os comentários já anteviam o que se viria a passar a seguir. “Nem sequer temos a alegria do Benfica. Eh pá, e para estragar tudo o Porto marcou agora”. Era o primeiro (de quatro) dos portistas contra o Belenenses.

Auto-estradas e as casas de banho do metro

Ainda faltavam 45 minutos para a saída dos primeiros resultados. Um pouco mais ao lado, outro grupo colocava a conversa ao nível psicossociológico. “O Costa não gosta de falar mal de ninguém. Mas o país não entende”, lançou uma senhora na casa dos 60 anos.

O tema muda logo, à velocidade da entrada de um novo protagonista. Fala-se agora de auto-estradas. “Os transmontanos tinham direito a uma auto-estrada como os do Sul. E estou à vontade que sou transmontana.” Um sulista responde-lhe: “Olhe que na estação de metro do Campo Grande nem casa de banho há”.

O tempo passa, a sala ainda não está sequer cheia quando saem as primeiras projecções. Aproximava-se o momento do clímax, que para o PS teve o prefixo anti. Em uníssono e unanimemente dão a vitória à Portugal à Frente (coligação PSD e CDS). Os números não deitaram um balde de água fria sobre os socialistas, foi mesmo de água gelada.

Sul devia pedir a independência (como a Catalunha)

“Como é que é possível? Fogo!!!”, exclama um homem. Ao lado, há quem faça logo uma leitura mais fina dos resultados, mas também mais radical. O Norte votou laranja e azul e o Sul cor-de-rosa.

“Nós no Sul devíamos pedir a independência. Fazíamos como a Catalunha”, atirou um socialista para o ar. A revolta não ficou contida. “Vou emigrar”, disse logo ali ao lado uma mulher que aparentava mais de 40 anos. Um homem ao lado respondeu: “Daqui a dois anos vão ser um milhão e meio a sair do país.”

Uma mulher com o desespero na cara, a olhar para a subida do Bloco de Esquerda, questiona atónita: “Como é que uma pessoa vai do PS para o Bloco?”. Ao lado, um homem responde: “Foram todos contra o Costa. O PCP e Bloco têm muita culpa disto.” Uns metros à direita, uma mulher questiona: “Será que o medo e a fome afectaram assim tanto a capacidade dos portugueses em pensar?”

Mário Lourenço, de 65 anos, é engenheiro e anuncia quem ganhou. “Foi o salve-se quem puder”. E explica a imagem. Os últimos 40 anos, diz, foram de consumismo, egoísmo e a criação de um país menos solidário. O resultado, na óptica deste socialista, é que um programa como o do PS, que apoia a solidariedade, tem mais dificuldade em penetrar no eleitorado.

Fora da sala, Eurico Brilhante Dias, apoiante de António José Seguro, falava às televisões de “uma tendência clara de derrota”. O comentário imediato de um grupo de quatro amigos. “Está todo contente.”

“Costa respira”, Seguro não

Ouvem-se críticas disparadas para todo o lado: os partidos de esquerda, os meios de comunicação social, o povo que não escolheu bem, os outros.

Mas voltemos a Cristiana e Marlene, a professora e a funcionária pública, que olham para dentro do PS. “Na campanha falou-se de coisas que as pessoas não perceberam”, sentenciam.

Então Costa é culpado? Traiu Seguro, como muitos disseram, e isso não foi compreendido? “Não”, respondem em uníssono. “Este [Costa] respira. O outro não”. Pode continuar? “Não, ele tem de assumir as consequências”, disseram. Mais à frente percebeu-se que eram claramente minoritárias na sala.

O tempo passa e a sala começa a encher-se ainda mais. É sinal de que Costa está para chegar e fazer o discurso de fim de noite. Os lugares começam a ser poucos. Os “jotas” invadem a sala. A temperatura começa a subir e o suor a descer pelas testas.

Não foi tempo de confiança

Muita expectativa, até que Costa chega à sala. Sorridente e de braços no ar, lança a conversa em modo apologético. Fala da fibra de guerreiros dos socialistas.

As gargantas dos socialistas disparam numa gritaria: “COSTA, COSTA, COSTA. PS, PS, PS”.

Será que Costa se demite? “Manifestamente não”, responde.

O povo do Altis irrompe em histeria. Costa está para ficar, para dar luta, e a massa humana está contente. E até consegue levar alguns a umas tímidas gargalhadas. Mas há quem não disfarce a tristeza nos olhos. Lacrimejam.

As perguntas dos jornalistas são recebidas com enfado pela gente socialista. “Outra vez”, pontuava cada questão. Mas António Costa, sorridente, responde a todas e dá direito a duas voltas às televisões.

Passados 15 minutos termina o discurso. O povo ainda gritou à saída do secretário-geral: “Eu confio, eu confio”. A referência era ao “slogan” de campanha do PS. “É tempo de confiança”. Não foi. Foi tempo de derrota.