​Estado da Nação. Era uma vez um país e depois… Covid
23-07-2020 - 21:25
 • Susana Madureira Martins​, com ilustração de Ricardo Fortunato

Desemprego a disparar, exportações a cair, turismo quase parado, a saúde à espera de uma segunda vaga da Covid-19 e 45 mil milhões de euros de Bruxelas para gastar nos próximos sete anos. Entre a TAP, o BES e a crise "profundíssima", o estado da Nação é um autêntico caleidoscópio​, com um bloco central oficioso à espreita.

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Há um antes e um depois do dia 2 de março. O país andava à espera, é hoje não é hoje e nesse dia foi mesmo, foram conhecidos os dois primeiros casos de Covid-19 em Portugal.

Retrato de que o óbvio estava para acontecer a qualquer momento foi a declaração do Presidente da República nesse dia, à entrada do Salão Internacional do Setor Alimentar e Bebidas Marcelo Rebelo de Sousa reconhecia que "estranho era que, havendo em todos os países vizinhos, não houvesse nenhum caso em Portugal”.

Aconteceu e a partir daí o país político, económico e social mudou. O estado da Nação é o que é: o confinamento provocou uma derrocada praticamente em tudo. Sobretudo nos cofres do Estado e na tese das "contas certas". As metas do défice definidas por Mário Centeno foram pulverizadas. E, entretanto, Centeno deixou de ser ministro das Finanças.

Assim, desde março que tudo anda à volta da Covid, sempre a pandemia. O primeiro-ministro surge neste debate do estado da Nação com 45 mil milhões de euros no bolso, aprovados a ferros em Bruxelas, num Conselho Europeu que se estendeu por cinco dias.

António Costa, de resto, queria muito aparecer no debate mais importante do ano no Parlamento com o plano de recuperação económica da União Europeia aprovado e ainda em Bruxelas pediu mesmo o adiamento por dois dias do “estado da Nação”.

O primeiro-ministro sabe que todos, à esquerda e à direita, vão cobrar alguma coisa. CDS e PSD querem saber onde e como o dinheiro vai ser aplicado. Bloco de Esquerda e PCP acenam com o fantasma de mais austeridade e com os perigos de uma ajuda que pode condicionar as opções políticas e económicas do país.

Bloco central oficioso. Do orçamento suplementar ao fim dos debates quinzenais

Um dia depois do Orçamento Suplementar para 2020 aprovado, António Costa fez questão de garantir ao PS e ao resto da esquerda que "fique já claro: connosco não haverá bloco central, connosco haverá a continuidade da política que seguimos desde novembro de 2015”.


Pode não se chamar bloco central, mas o entendimento que tem existido entre o líder do PSD, Rui Rio, e o primeiro-ministro é real. A abstenção do PSD no Orçamento Retificativo foi exemplo disso.

Costa conseguiu controlar todos os danos, inclusive o de ficar sem um ministro das Finanças a meio do jogo, que transitou para o Banco de Portugal sem que o PSD levantasse muitas ondas.

A direção de Rio admitiu que a nomeação foi "legal", sendo embora um "problema sério de incompatibilidade". O vice-presidente do partido, Nuno Morais Sarmento, disse mesmo que a escolha não seria travada, sendo contra "leis ad hominem".

E depois veio a proposta de Rui Rio para acabar com os debates quinzenais. Caiu que nem ginjas a um primeiro-ministro que, é sabido, gosta pouco deste modelo parlamentar. O PS acompanhou a iniciativa, afastou a ideia de que o escrutínio ao Governo fique diminuído e a partir de agora, e no limite, os deputados verão António Costa de dois em dois meses.

O bloco central oficioso voltou a funcionar uma vez mais, com o pleno entendimento entre PS e PSD, na indicação de nomes para ocupar lugares em diversos órgãos externos eleitos pela Assembleia da República. Foi claro o sinal dado por Rui Rio ao considerar na sala dos Passos Perdidos como “particularmente feliz” a escolha do socialista Francisco Assis para presidir ao Conselho Económico e Social.

Bloco e PCP vão questionando, por isso, qual é o estado da Nação à esquerda? Os habituais parceiros do Governo andam na expectativa para perceber para onde é que Costa vai virar-se agora para negociar o Orçamento do Estado de 2021. As negociações já começaram e contam com um novo ministro das Finanças, João Leão, conhecido por ter mão de ferro e ser um negociador difícil.

Presidenciais e autárquicas em 2021. E legislativas antecipadas?

Em que estado estará a Nação quando 2020 acabar? É uma das muitas perguntas para um milhão de euros. Provavelmente, mergulhada na tal crise "profundíssima". Mas, sem parar. Mal comece 2021 o país já estará em campanha eleitoral para as presidenciais de janeiro.

Está tudo à espera que Marcelo Rebelo de Sousa anuncie a recandidatura, sobretudo o PS, para começar a mexer o xadrez. Em entrevista ao programa “Hora da Verdade” da Renascença e jornal “Público”, o presidente do Partido Socialista, Carlos César, disse não ver "urgência" na questão presidencial, admitindo, porém, que o atual Presidente será um dos candidatos que terá "elevadíssima preferência nas sondagens e no eleitorado do PS”.


No caso de confirmar-se que é mesmo recandidato, a Marcelo será cobrado o atual estado da Nação? Que custos vai ter a colagem que teve ao Governo socialista, sobretudo nesta reta final do mandato, em que o combate à pandemia foi considerado um desígnio nacional? E em janeiro em que estado estará a crise "profundíssima”?

E em relação às autárquicas de outubro do próximo ano, em que estado estará a Nação? Na mesma entrevista à Renascença e ao “Público”, Carlos César disse que não antevê problemas e que acredita que o partido terá "resultados sensivelmente na linha dos anteriores", sendo que em 2017 os socialistas ganharam as eleições em 159 municípios.

E se vierem aí eleições legislativas antecipadas? Na moção que Rui Rio apresentou ao congresso de Janeiro deste ano, o líder do PSD - que ignorou olimpicamente as presidenciais nesse documento escreve: "a partir de 2021, o PSD estará em condições reforçadas para governar Portugal".

É certo que em janeiro quando Rio apresentou a moção ainda não havia pandemia, mas, na eventualidade de haver um híper-agravamento da crise podemos ter um cenário hipotético de eleições legislativas?

À esquerda a resposta parece ser simples: não. Carlos César considera que "há uma consciência por parte dos partidos políticos, que a estabilidade é um fator essencial para o sucesso do país”.

E há algumas semanas, também no programa “Hora da Verdade”, o secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, disse não ver "a curto prazo uma possível crise" que leve a legislativas antecipadas.


Já em janeiro, Marcelo disse que "é óbvio que tem de haver estabilidade e não há sequer condições para estar a pensar em crises políticas e económico-financeiras", num período em que o Presidente da República não tem poder de dissolução do parlamento até abril e deixa de ter a partir de setembro, até ao final do mandato".

Mas isto foi em janeiro. Em 2021, logo se vê o estado da “Nação Marcelo”.

TAP, TGV e novo aeroporto

A meio da pandemia, e na sequência de uma crise "profundíssima" já reconhecida pelo próprio primeiro-ministro, o país viu-se na iminência de ver a TAP nacionalizada.

Durante meses registou-se um braço de ferro entre o administrador privado e o ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, que optou por um tom musculado, ora ameaçando com a insolvência da empresa, ora com a nacionalização, acabando por ser uma operação que ficou num meio termo, ficando o Estado com uma posição maioritária no capital da companhia aérea.

Será necessário mais dinheiro para a TAP para além dos 1.200 milhões de euros? O Governo não descarta a hipótese. Serão despedidos trabalhadores? Quantos? Não se sabe. O certo é que Bruxelas exige um plano de reestruturação e o debate do estado da Nação não deverá ficar alheado destas questões.

Enquanto se discute o futuro da TAP e o próprio futuro da aviação, de formas alternativas de mobilidade, o Governo mantém a intenção de construir um novo aeroporto na Área Metropolitana de Lisboa, vulgo Montijo.

António Costa Silva, o especialista nomeado pelo Governo para elaborar o plano de recuperação económica do país, defende que o "aeroporto e a TAP são indispensáveis", mas vai alertando que "as ligações aéreas de curta distância serão proibidas" a breve trecho. E é aqui que entra a aposta na ferrovia, com Costa Silva a defender a aposta na alta velocidade para ligações entre Lisboa e Porto.

As ideias do especialista serão agora cozinhadas e o documento de Costa Silva será a base do plano de recuperação que o Governo irá apresentar a Bruxelas. O "primeiro esboço deve ser apresentado à Comissão Europeia em outubro deste ano”, anunciou o ministro de Estado e da Economia, Pedro Siza Vieira.

À espera da segunda vaga, acusação do BES e Operação Marquês

Em poucos meses o estado da Nação transitou do "não usem máscara" da diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, para as orientações de uso generalizado de proteção facial, sobretudo em espaços fechados. Transitou-se também de um estado em que a Nação, entre abril e início de junho, teve a pandemia relativamente sob controlo, para o estado de controlo quase descontrolado na região de Lisboa e Vale do Tejo.

Os especialistas não conseguem explicar o que se passa com a pandemia nesta região, multiplicam-se as opiniões e o Presidente da República decidiu, entretanto, que não quer mais fazer de porta-voz das reuniões do Infarmed, acabando com o modelo.

O estado da Nação é agora o de deixar passar as férias de verão, ver o que isto dá e esperar pela moda outono/inverno que a pandemia poderá trazer, com os partidos a insistirem que é preciso preparar o país para uma eventual segunda vaga. E o mesmo já fez o próprio primeiro-ministro que avisou que, se chegar, as pessoas, as famílias (o Governo?) “não suportarão passar de novo pelo mesmo”.

Costa reconhece que, para evitar um novo confinamento e preparar o inverno, “o tempo é curtíssimo" e, "se calhar", não irá conseguir "fazer tudo", apelando ao "arregaçar das mangas".

Enquanto o país espera pela segunda vaga, espera também (sentado) pela conclusão de casos judiciais mediáticos. O juiz de instrução Ivo Rosa puxou forte do travão e adiou a data para decidir quem vai a julgamento na Operação Marquês que envolve o ex-primeiro-ministro José Sócrates e também Ricardo Salgado, com o banqueiro envolvido também no processo do Banco Espírito Santo, acusado agora formalmente pelo Ministério Público por diversos crimes, desde associação criminosa a branqueamento de capitais.

Passam-se os anos e a Nação também espera por ver o que acontece ao processo EDP, com António Mexia e Manso Neto a serem, entretanto, suspensos de funções como administradores, por decisão do juiz de instrução Carlos Alexandre.

Com o buraco nas contas provocado pela pandemia e a ameaça de novos rombos, os anunciados milhões de Bruxelas não permitem tranquilidade. Mais do que nunca paira a incerteza, também no plano dos entendimentos partidários com PS e PSD a darem sinais de maior proximidade.