Nunca em nosso nome (ou vergonha alheia)
11-09-2015 - 21:00

O Papa na entrevista que concedeu à Renascença – para ouvir e ler no nosso site já no próximo dia 14 – relembra o dever de acolhimento de todos os refugiados. Vale a pena ouvir as suas palavras proféticas e claras recordando a cada um o único critério pelo qual seremos julgados na hora da morte pelo nosso Deus.

Dói-nos a desumanidade. Dói-nos enquanto homens e mulheres normais. Simples cidadãos. Simples pessoas.

Dói-nos ainda mais como jornalistas. Porque sabemos que nos cabe esse direito e dever da denúncia. Que muitas vezes só está dependente de nós. Na escolha cúmplice do silêncio ou na corajosa opção pela acção. Porque sabemos que, às vezes, essa denúncia se pode tornar decisiva para mudar o olhar do mundo e levá-lo para uma reflexão sobre as causas do mal, fundamental para gerar a revolta ou a compaixão que, em última instância, possibilitará a mudança.

São tantos os exemplos. Mesmo os que nos dividem.

Lembro-me de Kevin Carter. O jornalista sul-africano que em 93 presenciou e imortalizou a cena do menino, que a extrema subnutrição transformara num quase esqueleto esgravatando no chão, sob o olhar atento do abutre esperando pacientemente a possibilidade de o tomar por presa.

A foto tornou-se um ícone e fez o seu autor ganhar o almejado Pulitzer logo no ano seguinte à sua publicação no “New York Times”. De republicação em republicação, a imagem fez depois o seu próprio caminho como despertador contra a indiferença que até aí rodeava o fenómeno da fome no Sudão.

Mas a imagem do menino, como o olhar penetrante do abutre, nunca mais deixou de perseguir a consciência do seu autor. Carter morreu sem saber o que depois soubemos: a criança que ele temia ter deixado abandonada à sua sorte trágica foi salva pela ajuda humanitária e sobreviveu à fome denunciada pelo repórter.

Nas últimas semanas a visão do corpito sem vida do menino sírio que deu à costa numa praia turca voltou a tocar o coração dos homens mostrando, mais uma vez, o poder da imagem. Tantas notícias a relatar centenas de milhares de vidas perdidas desde o início do ano no Mediterrâneo ganharam subitamente forma e cor e rostos. Foi como se de repente pudéssemos visualizar essa multidão de mortos vestindo-os um a um.

Uma multidão de homens e mulheres de todas as idades de blue-jeans, t-shirt vermelha e ténis negros. Naquela foto aprendemos que os mortos não dão à costa de uniforme de plástico negro devidamente embalados para seguir para as morgues, longe dos nossos olhares indiscretos.

É por isso que os pontapés e a rasteira da jornalista húngara cobardemente passadas aos refugiados em fuga no mais total desespero (um dos quais com uma criança ao colo) nos fazem sentir tanta vergonha alheia. São prova de que o ódio é capaz de gerar comportamentos inimagináveis que não se esgotaram na noite nazi. Mostram-nos que o Mal existe.

E dói-nos mais e torna-se ainda mais urgente denunciar porque este Mal está a ser praticado em muitos casos (como se verifica com as próprias autoridades húngaras) em nosso nome. Reivindicando-se da defesa de uma herança cristã que presente nas palavras a acção repudia.

Quem não sabe e não quer tocar piano não pode apresentar-se como pianista, e menos ainda intitular-se assim, dizendo fazê-lo de boa-fé. Quem desconhece e/ou rejeita os ensinamentos de Cristo não pode reivindicar-se Cristão.

O Papa na entrevista que concedeu à Renascença – para ouvir e ler no nosso site já no próximo dia 14 – relembra o dever de acolhimento de todos os refugiados. Vale a pena ouvir as suas palavras proféticas e claras recordando a cada um o único critério pelo qual seremos julgados na hora da morte pelo nosso Deus.