De que fala António Costa quando fala em ética republicana?
06-01-2023 - 18:50
 • Fábio Monteiro

Carla Alves demitiu-se por uma questão de ética republicana? Primeiro-ministro invoca esta expressão “por hábito”, “por tradição” no Partido Socialista, mas também porque lhe convêm e dá “margem de manobra”, explica o politólogo Pedro Silveira à Renascença. Escolhidos para o Governo devem refletir antes de aceitarem convites.“A sensibilidade política ainda não é know-how técnico”, aponta.

Eis duas frases, duas promessas, proferidas por António Costa, na quinta-feira à tarde, na Assembleia da República. Primeira: “Quando ferir a ética republicana, demito-me." E segunda: “Se estiver ferida a ética republicana, a secretária de Estado [da Agricultura] será demitida.” Ficou, porém, uma questão por esclarecer: em que nível está essa fasquia política?

É que, menos de duas horas depois da última frase ter sido proferida, Carla Alves, secretária de Estado da Agricultura em funções há menos de um dia, mas já envolta numa polémica por contas arrestadas, demitiu-se “por entender não dispor de condições políticas e pessoais”.

Afinal, a ética republicana tinha sido ferida? A resposta, tendo em conta a origem da expressão, é que sim.

Em Portugal, a ideia de ética republicana, que tem ligações às obras de filósofos como Platão ou Cícero, está especialmente conotada com a constituição da Primeira República e, em particular, à figura de Teófilo Braga, ex-Presidente da República (1915).

Teófilo Braga notabilizou-se por ser um dos grandes defensores da ideia que “a República é o governo da moralidade e da ordem”; defendeu que era “impossível” trazer “à razão”, “à justiça”, a monarquia. Por outras palavras, um Governo republicano devia ser honesto, transparente e rejeitar uma cultura de “favores” ou “preferências”.

António Costa rege-se pela mesma fasquia? É complicado. Em declarações à Renascença, o politólogo Pedro Silveira diz que, apesar do seu legado histórico, “hoje, quando falamos em ética republicana estamos a falar em ética política, ética na vida política, ética daqueles que exercem cargos políticos”.

(Trata-se de um entendimento que não é partilhado por todos os representantes políticos. Em 2006, o falecido ministro Joaquim Pina Moura, afirmou, numa entrevista ao “Expresso”: "A ética da minha relação com a política é a da lei. É a ética republicana.”)

Silveira evoca o exemplo de Manuel de Arriaga, o primeiro Presidente da República: “O primeiro inquilino do palácio de S. Bento pagou renda. É simbólico, um exemplo de valores, de desprendimento, de não aproveitamento dos cargos públicos para benefício próprio.”

António Costa invoca a ideia de ética republicana “por hábito”, “por tradição” no Partido Socialista, mas também, claro, porque lhe convêm e dá “margem de manobra”.

“A ética é um critério mais exigente do que a lei, o que no contexto atual é-lhe particularmente útil. Para mostrar que, apesar de tudo, mesmo que os casos e casinhos sejam legais e não tenham qualquer questão jurídica associada, faz com que seja exigível que um membro do Governo se tenha de demitir, como ele próprio disse que o faria”, explica Pedro Silveira.

Mais escrutínio, mais ética

Esta sexta-feira, a ministra Mariana Vieira da Silva defendeu que o “Governo não tem nem deve ter" acesso a detalhes de processos sobre governantes – um mecanismo que teria evitado o embaraço da nomeação e demissão da ex-secretária de Estado da Agricultura Carla Alves.

À Renascença, Pedro Silveira diz que “é difícil discordar” da ministra. Mas também sublinha que há muito que pode ser feito no processo de seleção de forma informal.

“Embora haja vantagens em se criar um sistema mais formalizado, nem sequer é necessário. O que é necessário é que os membros do Governo terem sensibilidade suficiente para perceber quem é a pessoa que vão nomear, fazer um esforço. Alguém do campo da coordenação política, do ministério da Mariana Vieira da Silva, que ajude o membro a fazer uma escolha mais informada”, diz.

Mesmo com uma “escolha informada”, vão continuar a existir erros de seleção, mas será possível mitigá-los, nota o politólogo. Somado a isto, os escolhidos pelo Governo devem também ter mais sensibilidade política.

“Para quem é escolhido como governante, o mínimo que se pede é sensibilidade política. E a sensibilidade política ainda não é know-how técnico. Sensibilidade política significa: fui convidada ou convidada para integrar o Governo. Aquele que é o meu passado, aquelas são as minhas questões capazes de criar algum melindre ao Governo, convêm que eu as explique, convêm que as coloque em cima da mesa. Mesmo que não ache que sejam muito relevantes”, afirma.

Uma expressão, muitas bocas

A expressão “ética republicana” não é exclusiva de António Costa ou do Partido Socialista – apesar de ser quem mais a refere. Ainda no passado dia 27 de dezembro, Ana Gomes, ex-candidata à Presidência da República e antiga eurodeputada do PS, disse que faltava “ética republicana” a Alexandra Reis, para pedir a demissão da então ainda secretária de Estado do Tesouro.

Na semana passada, em declarações à agência Lusa, o deputado socialista Hugo Costa, coordenador dos deputados do PS na Comissão de Economia, Obras Públicas, Planeamento e Habitação, considerou que “foi no estrito cumprimento da ética republicana que o ministro Pedro Nuno Santos apresentou a sua demissão”.

Quem está na oposição, faz uso da expressão para criticar. Em 2019, Nuno Botelho, presidente da Associação Comercial do Porto, assinalou o histórico do PS numa crónica no “Jornal de Notícias”. “A ética republicana é um argumento infalível de superioridade moral usado por líderes socialistas desde tempos imemoriais”, escreveu.

Em setembro no ano passado, quando eclodiu a denúncia de alegadas esquadras informais chinesas em solo nacional, João Cotrim de Figueiredo disse que o Partido Socialista “não consegue viver à altura da tão propalada ética republicana”.

Numa crónica no jornal “Nascer do Sol”, em outubro de 2022, Nuno Melo, presidente do CDS-PP, escreveu mesmo: “A ética republicana que há tantos anos adorna belos discursos dos socialismos não só morreu, como jaz bem funda.”

No Parlamento, no debate do Orçamento de Estado para 2023, o Chega de André Ventura utilizou-a como arma de arremesso. “A ética republicana, a de Sócrates, o filósofo grego e não o socialista, anda pelas ruas da amargura”, disse. “O PS nos últimos 27 anos governou 20 e coleciona casos e casinhos”.

Esta semana, o sociólogo António Barreto, em entrevista à “TSF” e ao “Diário de Notícias”, afirmou também: “O PS está a viver uma má compreensão da ética republicana que deveria ser servir a República e servir os cidadãos. Mas a que está a ser vivida pelo PS é aproveitar o que a democracia nos dá.”