​O som que a água faz nos seus caminhos invisíveis
13-06-2017 - 17:24
 • Dina Soares e André Peralta (sonorização)

Carlos Santos é um caçador de sons – ou será melhor defini-lo como um retratista? Durante sete meses, percorreu todo o caminho da água no Barreiro, desde a captação à torneira e à estação de tratamento de águas residuais.

Tudo começa com o som de água a correr, como se alguém se tivesse esquecido de fechar a torneira. Só que a torneira não está lá. Nem a torneira, nem a água, as tubagens, as turbinas, os motores e todos os outros elementos que constroem a rede pública de abastecimento de água de uma cidade.

Na exposição que assinalará os 80 anos da água canalizada no Barreiro, com inauguração marcada para este sábado, no Auditório Municipal Augusto Cabrita, nada se vê – tudo é som, desde o momento da captação da água até ao fim da linha, quando a água, já usada e tratada, é devolvida à natureza.

“Qual é o nosso contacto com a água pública? É abrir uma torneira e encher um copo. Não conhecemos muito mais”, explica Rui Pedro Dâmaso, da associação cultural OUT.RA. “O que fizemos foi ir às estruturas que permitem que esse momento final da torneira aconteça e, através dos sons, mostrar às pessoas que há uma rede muito complexa, uma diversidade de processos. O som que menos vamos ouvir é o som normal da água a correr porque esse todos o conhecemos.”

Rui é o principal organizador da exposição sonora “Águas Sonoras”. Reconhece que é um desafio utilizar um conceito que está muito ligado às artes visuais e transformá-lo numa experiência imersiva. Por isso, não se limita a mostrar os sons, revela também o processo de recolha.

O grande desafio passa por encontrar formas de pendurar os sons na parede para que todos os possam ouvir como se os estivessem a ver. “É preciso pensar em estratégias. Por exemplo, ter pontos de escuta, dispositivos móveis com auscultadores, onde as pessoas podem ir ouvindo esses instantâneos que foram gravados, bem como usar o som para criar o ambiente de toda a exposição. Mas é, de facto, uma exposição quase toda ela de paredes nuas.”

O caminho da água

A ideia de fazer retratos sonoros chegou há alguns anos a Portugal e começa a fazer caminho.

Carlos Santos é um dos caçadores de sons mais activos no país. Foi ele que, durante cerca de sete meses, percorreu todo o caminho da água no Barreiro, desde a captação à torneira e à estação de tratamento de águas residuais.

“Estabelecemos oito pontos, entre bombas supressoras, torres elevatórias, uma ETAR, todo o circuito desde a captação da água, distribuição até devolver de novo a água ao rio. Todo o processo foi identificado através do som. Gravei em sítios que as pessoas não conhecem”, descreve.

A água está sempre presente, mas na maior parte das vezes está escondida. “As pessoas têm uma ideia sonora da água, mas eu gravei muito pouca água. Gravei mais zumbidos, turbinas, motores a funcionar do que propriamente o elemento que está aqui em discussão. A maior parte das situações são processos de que a água faz parte, mas onde não está visível e, por isso, há poucos registos desse som que as pessoas conhecem da água, das gotinhas ou da ondulação.”

No total, Carlos Santos fez perto de três horas de gravações, que resultaram em 70 sons, alguns mais longos, em jeito de paisagens sonoras, outros bastante curtos, equivalentes a polaróides para escutar.

Ele faz a pergunta: “Porquê escolher o som e não a imagem?”. E dá a resposta: “Porque está mais longe da população, torna-se mais interessante e coloca o foco na questão do ouvir e não do ver. É importante que estes projectos ganhem mais tracção. O fenómeno chegou a Portugal há cerca de 20 anos e já começa a haver muita gente a pensar em som.”

Uma arte acessível a todos

Regressamos ao Barreiro. A ambição de Rui Pedro Dâmaso é ir documentando a história da sua cidade através do som. Um projecto mais vasto, do qual a exposição sobre o abastecimento público de água é apenas um capítulo.

“Esta exposição é parte de um projecto de retratar o Barreio através dos sons para que, ao longo dos anos, haja um mapeamento detalhado dos vários locais do concelho. Tal como numa fotografia, isto vai permitir ver o antes e o depois porque há sons que vão desaparecendo e novos que aparecem. Pretende-se que seja uma coisa viva e actualizada que vá mostrando cada vez com mais detalhe a evolução do Barreiro”, afirma o responsável da OUT.RA.

A associação é uma das várias organizações deste género existentes no país e no mundo. O objectivo é fazer um mapa-múndi para ser ouvido. “Muitos dos arquivos obtidos nesses projectos vão sendo integrados em mapas que existem a nível europeu e a nível mundial e que procuram dar acesso a sons que desconhecemos. Há centenas de pessoas a fazer este trabalho de forma séria e continuada”, diz.

Tal como na fotografia, Rui Pedro Dâmaso define o retrato tirado para se ouvir como um meio de mostrar o que se impõe, mas também o que não é óbvio.

“Quando pensamos em retrato, pensamos em imagem. Um retrato sonoro é precisamente a mesma coisa, mas sem a componente da imagem. É ir à procura, quer dos sons que são evidentes no nosso dia-a-dia, quer de sons que não podem ser ouvidos a ouvido nu. Apresentam ainda uma dimensão artística porque muitas vezes descobrimos sons que são como música”, explica.

A fórmula para fazer estes retratos não podia ser mais simples, diz Rui Pedro Dâmaso. “Podem ser captados com equipamentos muito específicos ou com um simples telemóvel. Depois, há graus de detalhe que dependem do equipamento usado. Mas tal como na fotografia, qualquer pessoa pode fazer retratos sonoros.”

A exposição “Águas Sonoras” estará patente até 31 Julho e de 1 Setembro a 15 de Outubro.