​Educar crianças não é para perfeccionistas
25-03-2022 - 07:42

A minha família é assim, imperfeita, os nossos jantares podem ser caóticos e volantes, mas não deixamos de ser uma família.

Há dias uma amiga dizia que a minha ideia de paternidade transmite serenidade; ela pelo menos sente isso, ver-me em ação como pai dá-lhe uma colherada de zen. Bom, a minha primeira reação foi, Pá, isso da serenidade é só mesmo cansaço à beira da exaustão. Mas depois comecei a pensar. Será que estou de facto mais sereno enquanto pai? Sim. Porquê? Porque me libertei de modelos de perfeição do passado que hoje em dia não são possíveis e que, apesar dessa impossibilidade prática, continuam a esmagar-nos.

Um exemplo: o jantar durante a semana de trabalho. O ideal é ser um momento a 4, não é? Pois, só que isso não é possível por uma série de razões. A minha mulher chega muito tarde já depois da hora de jantar. Eu odeio jantar; acordo muito cedo, na prática tomo dois pequenos-almoços, depois almoço e acabo por fazer dois lanches. Jantar para mim pode ser penoso. As duas miúdas têm, por uma série de razões, dois ritmos completamente diferentes e duas abordagens diferentes em relação à comida. Além disso, depois da formalidade cansativa da escola, um jantar ‘formal’ pode ser um momento desnecessário e, pior, causador de mais cansaço e atrito num dia-a-dia que já tem demasiado cansaço e atrito. Portanto, muitas vezes, elas acabam por comer em momentos separados e não necessariamente na mesa. Podemos fazer um piquenique no baú da minha avó que está no centro da sala e que faz de mesa de apoio. Podem comer nos tabuleiros no sofá. Podem até comer na minha secretária se estiverem a estudar. Tentar a perfeição do jantar a 4 ou mesmo a 3 é muitas vezes um esforço inglório e sem sentido. O facto de não jantarem juntas aqui e ali não afecta a sua relação de irmãs, acho até que ajuda em algumas situações. O facto de não jantarmos a 4 não faz de nós menos apegados à ideia de família. As conversas não têm de ser à mesa, podem ser na sala, na casa de banho, no quarto delas, na cozinha. Aliás, agora que penso nisso, falamos mais como família na cozinha a fazer comida do que à mesa a comê-la. Um jantar a 4 talvez fosse possível em 1980 ou 1960, quando a mãe era dona de casa e o pai chegava a horas do jantar num ritmo de vida mais calmo do que este. Ora, eu não sou “dono de casa”, trabalho e portanto falho muito na organização doméstica e a minha mulher chega quase sempre depois do jantar. Não podemos e felizmente chegámos à conclusão de que também não queremos replicar esse passado. A vida é o que é, não o que deveria ser. E quantas e quantas famílias não se sentam à mesa todos perfeitinhos para depois passarem a refeição a destilar fel e a trocar farpas?

A minha família é assim, imperfeita, os nossos jantares podem ser caóticos e volantes, mas não deixamos de ser uma família. A serenidade, se existir, vem daqui: aceitar a imperfeição, perceber que correr atrás de uma perfeição teórica e sufocada em regras é burnout certo e destruição. As famílias obcecadas com regras, com regras a mais, partem porque são demasiado rígidas. Uma família é um canavial, não uma parede.