Qual deve ser a posição do católico perante a biotecnologia?
01-04-2021 - 07:10

A resposta a esta questão, talvez a questão decisiva do campo católico neste século, está nas vacinas anti-covid. Passo a explicar porquê.

Estas vacinas tratam as nossas moléculas da mesma forma que uma pen drive trata um computador. Quando inserimos na usb uma pen com novos programas, alteramos a configuração do computador. Estas vacinas fazem o mesmo ao nosso corpo: trazem uma mensagem codificada que fala literalmente com as nossas moléculas, que assim são editadas. Sim, como num texto. Como dizia há dias Walter Isaacson, estas vacinas são no fundo um email que enviamos aos nossos anticorpos; esse email leva o rosto do vírus e, desta forma, os anticorpos ficam preparados para o embate. Isto é feito ao nível do RNA, o irmão menos conhecido do DNA. É neste RNA que se coloca a tal mensagem que leva a alteração ao nosso código genético. Espantoso, não é? Sim, mas também perigoso. Estamos a falar da edição do genoma humano ou CRISPR, uma técnica que fomos buscar às bactérias, que, como sabem, estão em guerra genética com os vírus há biliões de anos.

Qual é então a linha vermelha? É a linha que separa a medicina da eugenia.

Se podemos introduzir uma mudança no nosso código genético que alerta as defesas para um vírus exterior, também podemos usar o CRISPR para fazer mudanças no nosso código genético que conduzam, por exemplo, a um combate mais eficaz ao cancro. Através do CRISPR, podemos editar o código genético do doente y ou x para que este não tenha recaídas, para que o cancro não regresse. E, a par do cancro, há centenas de outras doenças que podem ser flanqueadas pelo génio do homem desta forma. A questão é que isto só pode ser aplicado em pessoas adultas ou pelo menos já com plena consciência. Não se pode editar o genoma humano ainda na fase embrionária, a fase inicial. Porque é que aquele cientista chinês cruzou a linha quando pegou em dois embriões para os tornar imunes à sida? A resposta está na diferença entre a medicina e a eugenia: se a mudança é feita nessa fase embrionária, passa a ser hereditária; a mudança não fica apenas na pessoa intervencionada (o que seria medicina), passa para os filhos e netos e bisnetos (o que é eugenia). Esta é a linha vermelha.

Temos de ter muito cuidado com a busca da perfeição genética e com a consequente abolição da diversidade humana que se esconde paradoxalmente nas doenças. A perfeição genética - nunca é demais relembrar – é um ovo de serpente. Uma coisa é usarmos a edição do genoma em pessoas adultas, como se está a fazer com estas vacinas anti-covid. Outra coisa é exterminar todas as doenças ainda na fase embrionária. Não temos esse direito, até porque essa busca da perfeição médica é bem capaz de ser a morte definitiva da empatia e compaixão. Há dias, falei aqui de uma personagem da série “Years and Years” que tem espinha bífida. Num futuro próximo, perguntam-lhe o que acha do extermínio da doença logo no útero das mães através da biotecnologia. Ela diz que acha mal, porque a doença faz parte dela, ela não sente que tenha alguma coisa errada. Walter Isaacson fala de um rapaz real, chamado David, que tem uma resposta parecida. Quando lhe perguntam se gostava de ter sido editado ainda no útero da mãe para assim não ter uma doença grave, ele diz que talvez não fosse boa ideia. Porque a doença tornou-o mais empático em relação aos outros e mais persistente e tenaz. A edição do genoma tem de ser medicina, não eugenia.