Suspeitos, porque sim
02-07-2015 - 13:12

E se os “bons” se converterem ao “mal” e nos tomarem a nós como alvos da devassa? Quem nos defenderá dos pretensos defensores?

Em matéria de terrorismo e quando o seu alvo é a nossa própria cultura livre e ocidental não podemos ser ingénuos, “naïfs”. Pois não. A ameaça terrorista cresce, entre nós, e o episódio da praia tunisina é apenas mais um exemplo de que o perigo generalizado nos espeita.

Mas esse reconhecimento não nos pode levar a olhar-nos, uns aos outros, como potenciais suspeitos. As nossas sociedades terão de reagir de forma inteligente e eficaz, sem cair na armadilha da deriva policial que destrói o nosso modo de vida. Algo que, em boa parte, aconteceu nos Estados Unidos após os atentados de 11 de Setembro de 2001.

Esta semana, na Grã-Bretanha, entrou em vigor a lei antiterrorista anunciada em Novembro e que ao longo dos últimos meses fez correr rios de tinta. Na altura foi apresentada pelas autoridades como essencial para fazer face “à pior ameaça das últimas décadas!”. Mas para quem ainda se lembrar do debate sobre a lei trabalhista de 2005, torna-se evidente o caminho feito pelo medo na ultrapassagem das resistências, rumo à sociedade policial em que, pouco a pouco, nos estamos a converter. Vencidos, mas sobretudo convencidos, pelo repetido argumento da inevitabilidade.

No inicio de Maio, sob o governo de Hollande, foi a vez da França legislar sobre os serviços secretos, de forma a reforçar os respectivos poderes. A nova lei liberalizou o recurso às escutas, ao uso de câmaras ocultas e aos controles das redes de telecomunicações; e passou a permitir, entre outros pontos, que se vigiassem suspeitos sem recurso prévio à necessária “autorização judicial”. Gravíssimo.

Estas limitações de direitos gerais foram vistas por uma maioria da população , onde ganha terreno a extrema-direita, como “razoáveis” se aplicadas de forma proporcional pelos “ agentes bons” em legitima defesa contra o uso perverso dos nossos direitos por parte dos “maus” que nos querem destruir. É este raciocínio que nos leva direitinhos à abertura da Caixa de Pandora.

E se os “bons” se converterem ao “mal” e nos tomarem a nós como alvos da devassa? Quem nos defenderá dos pretensos defensores? É óbvio que a sociedade, como um todo, é chamada a reagir, garantindo a identificação precoce de processos de radicalização. É esse o bom motivo para justificar agora na Grã-Bretanha o maior envolvimento na luta antiterrorista das autarquias, escolas secundárias e universidades, serviços de saúde e serviços prisionais. O facto de se ter conhecimento do regresso a casa de perto de 350 britânicos, ex-combatentes ao lado do autodenominado “estado islâmico” (de um total de pelo menos 700 recrutados), basta como motivo para a preocupação acrescida. Até aqui tudo bem.

É uma questão de bom senso impedir que as prisões sejam terreno propício à constituição de células radicais. Com lei, ou sem ela, espera-se que a política de distribuição de prisioneiros pelas respectivas celas se preocupe em impedir a doutrinação dos presos de delito comum pelos terroristas radicais.

Idem para o reconhecimento de que as escolas e as universidades são o local ideal para fomentar o debate sobre o islamismo, combatendo a ignorância e propiciando aos jovens os argumentos necessários para formarem uma opinião crítica que lhes permita rejeitar o fanatismo, tornando-os menos vulneráveis ao fascínio do canto radical.

Mas deve impor-se às escolas e universidades que passem a exigir o conhecimento prévio do teor das palestras dos seus convidados, como aparentemente poderá resultar da nova lei? Não creio. Para evitar o quê? Se um pregador radical vier dizer coisas inócuas ao espaço escolar, isso torna a sua presença benéfica, e o convite mais ajuizado? Não.

Em que medida o “dever de preocupação” com o desenvolvimento de cada adolescente que está confiado à missão do professor não acabará pervertido com a obrigação de controlo e identificação precoce dos sinais de radicalização (missão para a qual a comunidade escolar receberá a devida formação), traduzida no dever da denúncia ao Ministério do Interior de qualquer suspeita de deriva radical? A obrigação de cuidar substituída pelo dever de controlar.

A família, a escola, a vizinhança, a própria comunidade laboral não pode assobiar para o lado e desresponsabilizar-se de uma missão de defesa comum? Pois não. Mas que meios podem ter os docentes para identificar esse fenómeno, sem devassa de privacidade e da própria liberdade de expressão dos seus estudantes? Idem para as autarquias, obrigadas a vigiar com software sofisticado o tráfico na net e nas redes disponibilizado aos seus usuários pelos respectivos serviços.

Em que medida a nova lei não acaba por transformar qualquer adolescente rebelde de origem árabe, ou qualquer rapariga que opte por uma indumentária mais extravagante, num potencial suspeito que acaba por ficar sob liberdade condicional na própria escola e na vizinhança? Tudo isto, muito antes de ser tornar delinquente e de existirem, aí sim, razões fundamentadas para tal?

Em que medida essa suspeição permanente e subjacente não mina a coesão das nossas sociedades e não constitui, antes de mais, uma enorme vitória dos próprios terroristas sobre o nosso modo de vida. Não, no Ocidente não há brigadas policiais para controlar os nossos costumes, a nossa religião e as nossas convicções. Nem queremos. E não podemos ceder nisso. Nem ser “naïfs”.