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A Moldávia, ou Moldova, pode ser o próximo país a entrar na guerra entre a Ucrânia e a Rússia, devido à região separatista da Transnístria. Afinal, como se escreve o nome de um dos países mais pobres da Europa e qual o papel da Transnístria para Vladimir Putin, uma região que ganhou atenção mediática no ano passado devido aos sucessos de um clube de futebol?
Numa chamada telefónica com o Sheriff, o clube da capital da Transnístria que fez história na Liga dos Campeões para o futebol moldavo, a conversa durou pouco mais de 20 segundos com a secretária do outro lado da linha.
"Hello, do you speak English?", pergunto, para perceber se o diálogo é possível. A resposta foi rápida, curta e simples: "Niet", russo para "não". Reforço a questão: "No english at all?". A resposta foi a mesma e a mensagem clara de quem não quer conversar com um estrangeiro.
Despeço-me, mas desta vez recebo uma resposta irónica no mesmo idioma: "Bye bye".
Apesar de pertencer oficialmente à Moldávia, este é apenas mais um retrato da Transnístria, região autoproclamada independente desde a década de 90, um resquício da cultura soviética e que continua fechado ao exterior, apesar dos feitos do seu clube nas provas europeias.
Desde segunda-feira que foram noticiados vários ataques militares na Transnístria. Duas antenas de rádios foram alegadamente derrubadas perto da fronteira com a Ucrânia e foi atacada uma unidade militar junto à capital Tiraspol.
Para Volodymyr Zelenskiy, presidente da Ucrânia, o plano da Rússia é claro: invadir a Moldávia a partir da Transnístria, território que faz fronteira com a Ucrânia.
“Entendemos claramente que este é um dos passos da Rússia. Não se trata apenas de notícias falsas, o objetivo é óbvio. É desestabilizar a situação na região, ameaçar a Moldávia. Eles mostram que se a Moldávia apoiar a Ucrânia, haverá certos passos”, disse.
A Rússia não garante que a Transnístria não entre no conflito com a Ucrânia. A Moldávia está em alerta máximo, a presidente Maia Sandu reuniu o Conselho Supremo de Segurança e acelerou o processo de adesão à União Europeia.
Moldova ou Moldávia?
A Moldávia é um dos vários países que surgiram após a dissolução da União Soviétia, em 1991. Mas afinal, como se diz o nome do país? Moldova ou Moldávia?
Há documentos oficiais do Governo português com as duas nomenclaturas, mas o termo mais correto é Moldova, uma vez que a palavra Moldávia é ambígua, porque se refere também à zona geográfica que inclui alguns territórios da Roménia, Ucrânia e da Transnístria.
A Moldávia é um dos países mais pobres da Europa. O país tem mais de 2,5 milhões de população e um dos PIB per capita mais baixos de todo o continente. A Moldávia tem sido um ponto de chegada para refugiados ucranianos. Em março, o país já tinha recebido mais de 240 mil ucranianos.
No que diz respeito à guerra entre Ucrânia e Rússia, a Moldávia considera-se "um país neutral” e apelou a Moscovo que “respeite esse princípio”.
O que é a Transnístria e onde se situa?
Em 1991, quando a Moldávia se proclamou independente, a região da Transnístria recusou integrar o novo país e autoproclamou-se independente.
Apesar da região não ser reconhecida como um país próprio, a verdade é que a Transnístria se apresenta como um país independente, com hino, bandeira, governo, constituição, feriados, moeda e economia próprias, um resquício da União Soviética com cerca de meio milhão de habitantes. O território da Transnístria é relativamente pequeno, mais pequeno, por exemplo, que o Algarve.
Qual o valor estratégico da Transnístria? Segundo o general russo Rustam Minnekaiev, o controlo do sul da Ucrânia deve permitir que seja fornecida ajuda aos separatistas da Transnístria.
O exército russo controla grande parte do sul da Ucrânia, mas os combates continuam na zona de Kherson e Odessa. A Transnístria situa-se no lado oposto destes confrontos.
Para além da alegada intenção de invadir a Moldávia, apontada pelo governo ucraniano, a Transnístria pode ainda ser importante na luta pelo controlo do sul do país que é o principal palco da guerra. [ver mapa]
Como o futebol colocou a Transnístria no mapa
Com uma forte economia industrial, Sheriff é a segunda maior empresa da Transnístria, criada por dois antigos membros da KGB na década de 90.
Por toda a região é fácil encontrar os diferentes ramos de atividade da Sheriff: postos de combustível, supermercados, um canal de televisão, uma fábrica de bebidas alcoólicas, uma rede telefónica e um clube de futebol.De acordo com o site da Sheriff, a empresa "fornece à população os produtos e serviços exigidos da forma mais eficaz e amiga do ambiente. A atividade da empresa contribui para o bem-estar da sociedade, o progresso social e a melhoria da qualidade de vida na Transnístria".
À primeira vista poderia parecer uma história de superação de uma equipa de menor expressão e capacidade financeira a superar as expectativas, mas depende da forma como se olha para o clube.
O clube domina o campeonato interno com total facilidade. Numa liga em que o futebol é praticamente amador, o Sheriff é o único que oferece condições totalmente profissionais: infraestruturas de topo, ao nível do Real Madrid e Barcelona, e salários chamativos para jogadores estrangeiros.
O português Rémulo Marques foi diretor desportivo do Zimbru, clube da capital moldava Chisinau entre 2015 e 2017, e explica que o Sheriff jogava num "campeonato próprio".
"Era um campeonato a um, uma luta desigual. Nós tínhamos o campeonato dos 'outros', brincava-se com que quem ficava em segundo era o campeão da Moldávia, também pela questão separatista. Sheriff ganhava o campeonato deles e o segundo era o verdadeiro campeão", diz, em sentido figurado.
De facto, é com base no talento de outros países que se explica o sucesso do Sheriff. Neste século, apenas por duas vezes o campeão não foi o clube de Tiraspol.
O Sheriff chegou à fase de grupos da Liga dos Campeões pela primeira vez e conseguiu causar impacto. Venceu no Santiago Bernabéu, casa do Real Madrid, e conseguiu atirar os ucranianos do Shakhtar Donetsk para fora das provas europeias.
Na surpreendente vitória em casa do gigante espanhol, nenhum jogador moldavo foi utilizado. O plantel é composto por jogadores europeus, sul-americanos e africanos. Gustavo Dulanto, um central peruano que teve dificuldades em afirmar-se no Boavista em 2019, é o capitão de equipa.
O talento português também atraiu o Sheriff. Ao longo dos anos, quatro portugueses alinharam com as cores do Sheriff: João Pereira e José Coelho, em 2011/12, José Guedes, em 2013/14, e Joãozinho, em 2014/15, hoje capitão de equipa do Estoril, na I Liga.
Guedes recorda uma cidade cinzenta, em que o clube de futebol era dos poucos motivos de interesse: "Tiraspol era uma cidade muito pobre, em relação ao que estamos habituados na Europa. O Sheriff dava alguma cor à cidade, mas era uma cidade muito cinzenta".
Se a atual época é histórica pela presença na Liga dos Campeões, a temporada 2013/14, com José Guedes, foi a primeira presença na fase de grupos da Liga Europa.
"Tirando o Sheriff, só o Zimbru tinha boa equipa, porque o resto das equipas era do nível do Campeonato de Portugal [quarta divisão portuguesa], ou até inferior. O Sheriff já tinha um bom projeto. Não joguei muito porque me lesionei na pré-época, mas tinham jogadores que tinham estado em grandes campeonatos, como o Melli, que tinha jogado no Bétis e no Gent. Fomos à Liga Europa e jogámos contra o Tottenham de Villas-Boas. Ficámos em terceiro, foi histórico porque o clube nunca tinha entrado na Liga Europa", conta.
A tensão política entre Moldávia e a Transnístria não transbordava para o futebol, segundo a memória de Rémulo. Dentro e fora de campo, os clubes menores chegavam a depender do Sheriff para garantir sustentabilidade financeira.
"Entre clubes, a relação não era má. Era cordial. Quando um jogador do Zimbru ou de outros clubes se destacava, o Sheriff contratava. Havia transferências de jogadores, não interessava ter más relações. Garantiam estabilidade nos orçamentos. Quando cheguei, foi-me explicado que vários patamares podiam ser atingidos na valorização de jogadores. O primeiro era chamar à atenção do Sheriff. Entre clubes não havia essa separação", explica Rémulo.
Qual a relação entre Transnístria e Moldávia?
O país esteve em guerra durante quase dois anos, entre novembro de 1990 e julho de 1992, quando foi acordado um cessar-fogo entre as partes, que dura até aos dias de hoje.
Desde 2014 que a Transnístria se quer juntar ao território russo. Depois de Vladimir Putin ter anexado o território da Crimeia e da Moldova ter anunciado planos para se juntar à União Europeia.
A passagem na fronteira nem sempre era pacífica e podia chocar quem não esperava uma realidade militar: "Logo depois da fronteira surgiam dois tanques de guerra apontados para nós. Eramos escrutinados até ao limite do exagero. Estivemos uma vez na fronteira quase quatro horas. Era sempre mais complicado ir lá jogar".
"Na primeira vez que fomos ao estádio do Sheriff pensámos que algo tinha acontecido, porque havia uma presença massiva de militares. Foram para a bancada apoiar o Sheriff. À porta do balneário tínhamos dois militares russos armados. Fazia-nos confusão, mas para os moldavos era algo normal, até se riam. No início, atemoriza um pouco. Em jeito de brincadeira, empatámos 4-0 e não tivemos problemas a vir embora", recorda Rémulo, atual diretor desportivo do Leixões.
Treinador ucraniano despede-se em Braga
Depois do terceiro lugar na Champions, seguiu-se o "play-off" da Liga Europa frente ao Sporting de Braga, que ditou o adeus do Sheriff às competições europeias.
Uma vitória por 2-0 em Tiraspol na primeira mão abria perspetivas de passagem aos oitavos de final, mas os minhotos deram a volta à eliminatória na Pedreira.
A Rússia invadiu a Ucrânia na madrugada de 24 de fevereiro. Nesse mesmo dia, à noite, o Sheriff jogava em Braga, orientado pelo treinador ucraniano Yuriy Vernydub.
No fim do jogo, o técnico praticamente não abordou a eliminação da Liga Europa. Em vez de futebol, Vernydub anunciou que se iria juntar ao exército ucraniano assim que a equipa voltasse à Moldávia.
Vernydub não voltou à região separatista e pró-russa da Transnístria e foi, entretanto, fotografado já na linha de defesa ucraniana.
Depois de três décadas de cessar-fogo e de um paz militarizada em Tiraspol, a Moldávia e a Transnístria podem voltar a ser empurradas para a guerra, que pode passar as fronteiras da Ucrânia depois de mais de 60 dias de conflito.