O dilema que faz de nós cristãos
21-06-2019 - 06:36

Os dias para servir terão sempre um sabor de frustração devido ao talento que está preso como um felino na jaula. Os dias do talento, os dias da criação, terão sempre o sabor da culpa, porque haverá sempre gente que não estamos a servir.

O senhor manda-nos servir, mas também nos manda seguir os nossos talentos. O discurso religioso fala muito do serviço, na renúncia que temos de fazer pelos outros. É verdade. No entanto, a parábola dos talentos também é translúcida: não podemos desperdiçar os dons recebidos; não podemos desperdiçá-los na acédia, não podemos enterrá-los na falta de confiança ou naquela desculpa conveniente, Ah, tenho muitos afazeres! Um dos afazeres da vida tem de ser apanhar o caminho de migalhas deixado pelo nosso talento, seja ele qual for. Por outras palavras, o senhor deixa-nos, como sempre, no centro de um dilema insolúvel.

As raras pessoas cujo talento é servir (isto é, os santos) não têm de passar por este dilema, mas nós, os comuns dos mortais, vivemos e viveremos sempre no espaço de atrito entre estas duas prescrições contraditórias. Se estou a servir os outros, um dever colectivo, como é que posso desenvolver os meus talentos, um pulsão individual? Se o meu tempo é aplicado no serviço aos outros, os meus filhos, os meus pais, os refugiados, os carenciados, como é que posso aplicar o tempo nos meus dons? Em sentido inverso: como é que posso servir os outros quando estou a trabalhar em algo que radica na minha radical solidão? Os livros e gurus de auto-ajuda têm sempre grandes planos e saídas para este enredo; prometem o fim deste e de outros dilemas. Essa promessa é uma ilusão homeopática. Viver com este dilema é a própria condição humana. A questão não é superá-lo através de uma dialética mágica; a questão é saber incorporá-lo na nossa moral – ele é a nossa espessura moral.

Os dias para servir terão sempre um sabor de frustração devido talento que está preso como um felino na jaula. Os dias do talento, os dias da criação, terão sempre o sabor da culpa, porque haverá sempre gente que não estamos a servir. É assim. Não há saída deste labirinto. Mas, se calhar, esta é uma boa definição do cristão: viver nesta tensão, nesta voltagem que nos mantém vivos, inquietos, na ponta dos dedos.