Especialista acredita que os agricultores vão pagar pelo uso da água
29-07-2024 - 06:01
 • Sandra Afonso

O diretor-executivo do SAWACO Water Group, um grupo focado na dessalinização e reutilização de água, avisa, em entrevista à Renascença, que a fatura da água vai aumentar em Portugal e os mais afetados serão os agricultores. Nizar Kammourie acredita que a dessalinizadora projetada para o Algarve é apenas a primeira de várias, mas defende que o país aposte em diferentes soluções.

Portugal não pode meter os ovos todos no mesmo cesto, mas tem de ser rápido e ágil nas respostas ao crescente problema de falta de água no país. Porquê? Porque a tendência é para que este problema aumente e com ele a escassez e a subida dos preços. No imediato, os agricultores serão os que vão sentir mais a subida da fatura.

Nesta entrevista à Renascença, à margem da Cimeira “Digital With Purpose” realizada no Estoril, Nizar Kammourie fala de diferentes soluções e metodologias para captação e reaproveitamento de água e como funcionam. O CEO do SAWACO Water Group explica ainda o que procuram hoje os países e regiões.

Este grupo aplica soluções em grande escala em todo o mundo, ainda assim, Nizar Kammourie comenta a dessalinizadora projetada para o Algarve e deixa conselhos.


Onde trabalha neste momento, em que países?

Trabalho entre a Arábia Saudita e o Canadá. Temos muito investimento em tecnologias no Canadá e estamos também a implementar muitas tecnologias da América do Norte na Arábia Saudita, estamos a testá-las.

Que tipo de tecnologias?

Como a "capacitive deionization" e o "brine management" (a remoção de iões de sódio, os sais minerais dissolvidos nas águas residuais).

Como um recurso cada vez mais escasso, quais são as melhores soluções que estão hoje disponíveis para garantir água potável à população?

Diferentes geografias têm requisitos diferentes.

Em regiões áridas como a Subsaariana, como o estado do Golfo Pérsico, há muito pouca precipitação, por isso não há água natural para captar, a única solução é abrir poços e retirar água de aquíferos subterrâneos. É a chamada água fóssil, é usada uma vez e não são reabastecidos, por isso têm muito cuidado com essa água.

A fonte renovável de água é a dessalinização, da água do mar ou do Golfo. Ocorre em áreas que não têm precipitação de chuvas. Quando há água disponível, mas a água é de má qualidade devido à poluição, aplicamos diferentes tecnologias como a dessalinização de água salobra, também para tornar a água mais sustentável e utilizável.

Essa água é reaproveitada, tratada?

Sim, temos que tratá-la, mas não precisamos dessalinizá-la, porque não é solução salina. É água com muitas impurezas. Fazemos vários níveis de pré-tratamento e filtração e passamos por um processo de osmose reversa, mas com pressão mais baixa. Ou seja, consome menos energia, mas produz a mesma qualidade de água.

Água potável?

Sim, claro! É tão boa como a água natural.

Qual será a melhor solução para a Europa?

Temos áreas com água de rio onde a poluição ou as impurezas têm um nível aceitável, aqui podemos aplicar uma filtragem simples, não custa muito. É o que acontece aqui em Portugal, no resto da Europa e no Canadá. Há ainda outras áreas onde a única fonte de água poderá ser o aquífero, mas também aqui só é necessária alguma filtragem e às vezes o que chamamos de processo de osmose reversa.

Qual é o processo mais caro?

O mais exigente e mais caro é a dessalinização da água do mar, como reduzir um elevado nível de salinidade, de 45.000 ppm, para menos de 500 ppm. É necessário muita energia.

Uma solução é alimentar esta central de dessalinização com energia renovável, como energia solar e eólica. Mas atualmente a fonte mais viável de energia renovável é a energia solar.

Essa é a solução que mais aplicam?

Isto é o que chamamos de central de dessalinização solar, uma tendência que existe nos últimos 10 anos, mas está a ganhar força agora e em certas regiões já começam com isto. Não é generalizado.

O volume de centrais que utilizam energia solar ainda é muito pequeno, mas há novas mega centrais, que estão a começar entre Abu Dhabi, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita, 700.000 metros cúbicos por dia ou milhões de metros cúbicos por dia. Parte da produção será via energia solar.

Estamos a assistir a uma mudança de tendência, em vez de dependermos dos combustíveis fósseis e da rede nacional para obter energia. Agora, parte da energia é gerada por energia solar.

Há desvantagens?

O problema com a energia solar nestas centrais enormes é que para cada megawatt é necessário cerca de 6.000 metros quadrados de terreno. Com uma central de dessalinização na área costeira, o terreno circundante será muito caro para instalar painéis solares por perto. Se for necessário 25 megawatts, isso significa 25 megawatts vezes 6.000 metros quadrados, são centenas e centenas de milhares de metros quadrados de terras costeiras.

Qual é a alternativa?

Outra solução será construir o parque solar no interior e depois transferir a eletricidade para a central de dessalinização. Obviamente, perderá alguma da eficiência, mas é melhor do que nada.

Mas, até agora, a indústria de dessalinização não é totalmente alimentada por energia solar. Estamos no início e acredito que 20 a 30% de toda a nova capacidade funcionará com energia solar nos próximos cinco anos. É a minha previsão e expectativa.

Essa água é só para os consumidores da zona ou pode ser consumida também no interior do país?

Sim. Por exemplo, se tiver cem ou duzentos mil metros cúbicos, armazenados, podem ser bombeados por centenas de quilômetros. O custo do bombeamento por gasoduto não é assim tão elevado, se a infraestrutura existe. Mas, se quisermos instalar as tubagens então é um enorme projeto de infraestrutura.

Geralmente, as centrais de dessalinização servem cidades, não se limitam a uma faixa de terra. São construídas para abastecer uma cidade inteira e bombear água para a rede da cidade. Isto também cria outro problema, porque a maioria das redes não é eficiente e às vezes perde-se 20 a 30 por cento da água na rede, com tuto o que isso implica em custos energéticos e químicos de produção.

Sente que a água é um dos problemas do futuro? Estão a aumentar os países e regiões que procuram soluções que garantem água potável?

Sim, infelizmente as alterações climáticas são uma realidade, assistimos ao aquecimento global ou ao frio global, se assim posso dizer. Vemos padrões climáticos extremos. Todos os anos aumentam os países que tentam forçar a entrada no clube da dessalinização.

Recentemente, Montevidéu, a capital do Uruguai, ficou sem água e o governo teve que enviar água engarrafada só para permitir que as pessoas bebessem. O México é outra cidade que sofre com a escassez de água. Há alguns anos a Cidade do Cabo ficou praticamente sem água. Em Portugal há problemas a sul, no Algarve. Não falta água na torneira, mas há problemas com a água para a indústria, água para o turismo, a agricultura.

Já existem planos para a construção de uma dessalinizadora no Algarve. Conhece o projeto?

Sim. São 43.000 metros cúbicos por dia.

É uma boa solução para a região?

Penso que para construir a resiliência do abastecimento de água, Portugal tem de bater à porta de todas as soluções e a dessalinização é uma das soluções. Sei que na Europa e na União Europeia as pessoas estão muito preocupadas com o impacto ambiental da dessalinização.

Muitos ambientalistas opõem-se à dessalinização, mas precisamos de olhar para a necessidade de crescimento e de bem-estar das pessoas. Se a central de dessalinização for construída adequadamente e com a mitigação adequada do impacto ambiental, pode ser uma boa solução, embora dispendiosa, mas uma boa solução.

É claro que Portugal não pode confiar apenas na dessalinização, mas não a deve excluir e acredito que nos próximos cinco a dez anos veremos algumas grandes centrais a serem construídas em Portugal, especialmente no sul, para resolver alguns dos problemas de abastecimento de água e criar resiliência para o abastecimento de água e não creio que seja uma má ideia, especialmente se batermos à porta dos maiores promotores do mundo que estão a produzir água dessalinizada a preços extremamente baixos e competitivos. Portugal pode beneficiar da experiência e expertise destes promotores internacionais, que podem fornecer água dessalinizada a preços competitivos.

Acredito que a dessalinização deve fazer parte de um espectro de diversas soluções.

Que outras soluções deveríamos ter no país?

Primeiro, é preciso fazer a conservação e aumentar a eficiência do uso da água. Portugal tem de digitalizar o sector da água, para conseguir recolher mais dados e entender quanto se perde na rede, saber quanto se bombeia para a agricultura.

Hoje, com um simples investimento em sensores que medem o teor de humidade do solo, aliado a um algoritmo baseado em IA, pode começar a bombear água nas quantidades certas para as áreas certas, em vez de bombear água de forma arbitrária. Ou seja, uma solução digital pode ajudar, a dessalinização pode ajudar, a conservação pode ajudar, ou uma melhor gestão dos recursos, talvez construindo mais ou menos barragens.

Pretende-se que as águas residuais domésticas sejam encaradas como um recurso, não sejam apenas despejadas no mar, depois de tratadas. Que sejam tratadas para o setor terciário ou agrícola, isso pode ser uma grande ajuda no abastecimento de água. Para isso não é necessário construir uma central. Podemos ter uma combinação de reutilização de água, e sei que as pessoas na União Europeia são sensíveis a isso, para a agricultura.

Digitalizem o sector da água, tentem utilizar os aquíferos de uma forma mais inteligente e usem a dessalinização, para terem um cocktail de soluções que ajudarão Portugal a mitigar e criar uma melhor resiliência para o abastecimento de água.

Precisamos de mudar a forma como usamos a água na Europa?

Talvez se surpreenda com o fato de os europeus não desperdiçarem água e não consumirem água como é consumida no Canadá, nos Estados Unidos ou no Golfo. Os europeus são mais racionais no uso da água.

O consumo per capita em lugares como Portugal, Espanha, França está abaixo de 200 litros por pessoa, já em lugares como o Canadá e a América, é de 400 litros por pessoa e pode chegar a 450 em lugares como a Arábia Saudita, onde a água é muito cara.

Os europeus estão a fazer um trabalho relativamente bom na utilização da água, mas é preciso pensar mais sobre como encontrar soluções inteligentes para a água, porque o comportamento geral dos cidadãos não é mau e isso é louvável. Especialmente na Escandinávia e em lugares como a Dinamarca, onde estão cercados por água, consomem 90 litros, na Suécia são 110 litros e têm o maior número de lagos de água doce e per capita.

Portanto, os europeus não são bebedores de água, se o posso dizer.

Em Portugal, e em particular na zona do Algarve, o problema vai para além do consumo doméstico. Há duas áreas que exigem muita água, o turismo e a agricultura.

O crescimento do turismo, como sabe, requer muita água para campos de golfe, para hotéis, para resorts, etc. Na agricultura o mesmo. Pela pouca pesquisa que fiz, muitos agricultores portugueses procuram culturas de alto valor, como frutos silvestres, que exigem muita água. É aqui que são necessárias soluções inteligentes, que saiam do clássico como a dessalinização e a reutilização de água.

No futuro a tendência será para termos a água mais cara do que a energia?

Sei que a energia é extremamente cara em Portugal. Eu sei que o quilowatt-hora é de cerca de 20 cêntimos de euro, o que equivale a 25 cêntimos dos EUA e se compararmos com a Arábia Saudita é 4,6 cêntimos. Então a dessalinização aqui vai custar caro em termos de custo de energia e é por isso que em Portugal a dessalinização deveria realmente depender da energia solar. Esse é o caminho a seguir.

Em termos de comparação, a energia está em quilowatts hora e a água está em litros, há uma grande diferença. Mas acredito que os preços em Portugal vão aumentar, não para os níveis da Escandinávia, mas tenho a certeza de que serão mais altos do que os atuais, especialmente para acomodar o uso desnecessário de água. Penso que o maior impacto será sobre os agricultores porque os agricultores não pagam pela água, se tiverem um poço limitam-se a bombear.

O que pode ser feito no imediato?

Eventualmente Portugal irá seguir o modelo da Califórnia, os dois países têm muito em comum no que diz respeito ao stress térmico, às fontes de água e à agricultura.

A Califórnia acaba de aplicar uma taxa aos agricultores para utilizarem as águas subterrâneas e acredito que Portugal seguirá o exemplo para que as pessoas paguem mais pela água, pelo menos os agricultores.