Cristã e lésbica (por esta ordem e sem contradição)
28-06-2019 - 06:23

O erro da “ideologia de género” é a anulação da natureza humana, é a anulação da biologia e da psicologia humana que são anteriores à vontade da sociedade e da própria pessoa. Uma pessoa não escolhe ser gay ou hetero, descobre-se enquanto gay ou hetero.

O catolicismo tem de resolver o seu problema com a homossexualidade. E esse problema radica num ponto há dias salientado pelo leigo dominicano Sérgio Dias Branco no Ponto Sj: a igreja continua a ver na homossexualidade uma escolha, e não uma descoberta. É um erro. Pior: é um erro que coloca a igreja ao lado da tal “ideologia de género”. Explico porquê.

O erro da “ideologia de género” é a anulação da natureza humana, é a anulação da biologia e da psicologia humana que são anteriores à vontade da sociedade e da própria pessoa. Uma pessoa não escolhe ser gay ou hetero, descobre-se enquanto gay ou hetero. Esse desejo sexual já lá está na sua natureza. Quando dizem que a “orientação sexual” é um mero produto do condicionamento social e que a sexualidade é uma mera “construção social” e, portanto, os cartões da escola não devem ter “pai” e “mãe” mas sim “progenitor um” e “progenitor dois”, os ideólogos da moda incorrem num absurdo. Um absurdo que até põe em causa décadas de luta pela igualdade de mulheres e gays. Porque o que esta falácia anda a dizer é que, ora essa!, não há mulheres nem homens, nem hetero nem gays, há apenas uma pasta sem forma que cada um pode moldar como bem entende. É a ideia de que a razão humana é omnipresente e omnipotente.

O curioso é que este absurdo é partilhado por muitos católicos e até pela igreja, que, como já disse, continua a dizer que a homossexualidade é uma escolha. Alguns católicos já nos dizem que temos de respeitar essa escolha. Mas, mesmo este respeito, parte de uma base errada: ser lésbica não é uma escolha, é uma condição natural.

Acabei de ver há dias uma série da HBO que pode iluminar este debate. "Gentleman Jack” conta a história real de uma aristocrata inglesa do século XIX, Anne Lister, que assumiu mais ou menos às claras a sua condição homossexual. Não se pense porém que estamos perante uma revolucionária ou “progressista”. A série da notável Sally Wainwright ("Happy Valley") revela-nos uma personagem complexa: se anseia pela igualdade amorosa e sexual para as pessoas de inclinação homossexual, Anne é profundamente snobe na defesa das desigualdades sociais entre aristocratas e povo. E, acima de tudo, é conservadora e cristã. Ela quer casar e formar uma família com a sua paixão, Ann Walker. Não sente qualquer contradição entre a sua fé e o seu desejo, porque percebe que foi criada assim por Deus. Não quero revelar o final para quem ainda não viu, mas digo apenas que a cena da igreja é comovente como poucas.

Anne assume que foi criada assim por Deus. Podemos debater este ponto. Uma pessoa é criada lésbica desde o início? Ou é algo que surge na gestação? Ou nos primeiros dias ou meses após o nascimento? Não sabemos. O que importa salientar é que a pessoa descobre-se homossexual, não se cria homossexual. É uma condição que é dada à pessoa por uma força ou forças que ela não controla, não é uma autorecriação. Portanto, a série levanta problemas aos dois lados da equação, quer ao lado da “ideologia de género”, quer ao lado dos sectores católicos que recusam aceitar a ideia da homossexualidade enquanto parte da Criação.

Para tentar flanquear a questão, alguns católicos dirão que os gays fazem parte da Criação mas enquanto erros ou falhas. Ou seja, alguns dirão que a homossexualidade deve ser vista como uma doença congénita como tantas outras. E então? Mesmo que estivesse correta, está visão nunca poderia justificar o boicote católico aos homossexuais. Não acolhemos nós a vida de todos as pessoas que já nascem “doentes” ou “deficientes”? Já é tempo de sairmos deste bloqueio. A cristandade levou um milénio e oito séculos para ilegalizar de vez a escravatura. Dois milénios inteiros não chegam para normalizar Mateus 19, 12: "Há eunucos que nasceram assim no seio materno"?