Depois do Estado Islâmico, os yazidis vivem agora com medo da Covid
27-10-2020 - 06:35
 • Mirza Dinnayi*

Poucas comunidades sofreram tanto na pele os horrores do Estado Islâmico do que os yazidis. De etnia curda e praticantes de uma religião ancestral, foram massacrados sem piedade e viram as mulheres raptadas para serem escravas sexuais. A comunidade ainda tenta recuperar e agora tem outro inimigo à perna, só que este é invisível.

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Para uma comunidade vulnerável como a yazidi, no Iraque, que ainda há poucos anos foi vítima de um terrível genocídio cometido pelo Estado Islâmico, a Covid-19 é um problema acrescido.

Neste momento 80% da comunidade de 375 mil yazidis de Sinjar – a nossa terra ancestral, cuja montanha é para nós sagrada – ainda está a viver em campos de deslocados no Curdistão iraquiano. Numa altura em que a OMS estipulou que a principal forma de prevenir a infeção é o distanciamento social, os yazidis estão a viver em tendas nesses mesmos campos, sem condições para distanciamento, pelo que se houver algum caso de infeção espalhar-se-á rapidamente, afetando toda a população.

Uma vez que tanto o Governo central do Iraque como o do Curdistão decidiram adotar o confinamento rigoroso, os campos tornaram-se autênticos guetos. Ninguém pode sequer sair.

A situação financeira e social dos deslocados tornou-se ainda pior e mesmo que pudessem sair não têm casas para onde regressar, porque a maior parte da região ainda está destruída.

Cerca de 75% das casas nas aldeias de Sinjar eram feitas de terra e foram arrasadas, por isso as pessoas estão remetidas aos campos, acossadas pelos conflitos políticos e as várias milícias e grupos armados que dominam a região.

A situação regional é complicada ainda mais pela interferência em Sinjar da Turquia e do Irão, tornando os yazidis vítimas de vários interesses.

Para além das dificuldades políticas em Bagdade e da crise financeira e da corrupção, que afetam todo o país, as regiões dos yazidis fazem parte do que se chamam as áreas disputadas por Bagdade e o Governo Regional do Curdistão, em Erbil. A situação política criou um vácuo na administração local. Os cargos de autarcas e de administração local estão vazios há mais de três anos. Alguns oficiais estão a trabalhar a partir de gabinetes alternativos, longe da região, mas isso significa que as restrições da Covid-19 tornaram quase impossível aos cidadãos aceder a serviços administrativos e burocráticos.

Mesmo os bens que chegam aos yazidis deslocados através de ONGs internacionais são em muito menor número do que as enormes necessidades e muitas vezes ficam pelo caminho por causa das medidas de prevenção da Covid-19, que ignoram a situação específica desta gente.

Nos campos os níveis de desemprego são muito altos e as poucas pessoas que conseguiram emprego fora das zonas dos campos acabaram por ser forçosamente separadas das suas famílias.

Outras pessoas, entretanto, tinham-se mudado para Bagdade e para outras regiões do sul do país e agora estão impedidas de visitar as suas famílias nos campos. Tiveram de passar as suas férias de quarentena e voltar para o trabalho sem poder matar saudades dos parentes, pois o Governo estava com medo de que se alguma dessas pessoas estivesse infetada poderia acabar por pôr todo o campo em perigo.


*Mirza Dinnayi é yazidi, natural do Iraque. Ainda jovem emigrou para a Europa, tendo-se estabelecido na Alemanha. Fundou uma organização para ajudar a salvar yazidis retidos em zonas controladas pelo Estado Islâmico na altura em que estes foram mais duramente perseguidos. Encontra-se agora em Sinjar para ajudar a reconstruir a região.