​Alice Vieira, rainha de Penafiel: "As pessoas vêm falar comigo nas ruas e dar-me beijinhos"
07-10-2016 - 20:21
 • Maria João Costa

“Nunca na minha vida pensei em ser escritora, mas sempre quis ser jornalista”, diz em entrevista à Renascença a estrela do Escritaria 2016.

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Com quase 40 anos de vida dedicada à escrita, a autora de livros juvenis está a escrever um romance para adultos. A Renascença entrevistou Alice Vieira para o programa Ensaio Geral, que esta semana é feito em Penafiel. Até domingo, o Festival Escritaria é dedicado a ela.

O que é que quer ser quando for grande?

Queria ser aquilo que eu sou, jornalista. Era aquilo que quis ser mesmo desde muito pequena. Nunca na minha vida pensei em ser escritora, mas sempre quis ser jornalista. Portanto, quando for grande quero ser jornalista outra vez.

Sei que diz que não se importa que os leitores falem consigo, mas estas homenagens deixam-na nervosa? São quase 40 anos de escrita, ainda não está habituada?

A palavra homenagem afecta-me um bocadinho. Aqui em Penafiel tem sido muito engraçado porque tem acontecido aquilo que eu gosto. São as pessoas que vêm falar comigo nas ruas, não me conhecem de lado nenhum, e vêm-me dar beijinhos. Isso eu gosto. Quando digo que as homenagens me fazem um bocadinho de aflição, penso nas aulas cheias de crianças a baterem palmas. Sinto-me a Rainha de Inglaterra.

Eu trabalho há quase 40 anos – e trabalho tanto. Se há uma cidade que decide que decide homenagear quem trabalha muito isso faz toda a diferença. Aqui o que está a ser homenageado é o meu trabalho. Ainda bem que esse trabalho é reconhecido. Não conheço nenhuma terra como Penafiel onde durante dias um autor "tropece" nele. Há sempre retratos, desenhos. Eu estou em toda a parte. Quando vejo que as coisas dão muito trabalho, reconheço logo que estou entre pares.

É um programa intenso.

Intenso e eu não estou em muito boas condições de saúde. Se estivesse isto era melhor! Mas já dancei e tudo. [risos]

O padre Tolentino Mendonça e o escritor Mário Zambujal são alguns dos convocados para esta edição do Escritaria, eles trazem a sua dimensão como jornalista e como poeta. A Alice é esse todo: poeta, escritora infanto-juvenil e jornalista.

Acho que é esse todo, embora seja um todo que não é para tudo. Eu não gosto que a minha parte da escrita para adultos seja dada às crianças. Não tem nada a ver com elas. É outra coisa. O Mário Zambujal, que me conhece há mais de 50 anos, vem falar do nosso percurso pelo jornalismo. O padre Tolentino infelizmente não pode vir. Terei o Fernando Alvim, que é a nova geração. Vão estar as minhas ilustradoras. Penso que se vai falar das outras coisas que eu faço. Do jornalismo, do cinema, porque vai cá estar o Jorge Paixão da Costa com quem trabalho muito em guiões para cinema.

Teme ser só olhada como a escritora dos livros para a infância e juventude?

Não é temer. Gosto muito! O grosso dos meus livros é para a adolescência. O que não quer dizer que não escreva para outros públicos. Eu gosto de escrever para quem me apetece. Agora estou a escrever para adultos. Estou finalmente a acabar um romance para uma das minhas editoras que espera este romance há mais de quatro anos. Está quase no final. É aquilo que me dá mais jeito, aquilo para que estou mais virada na altura.

Tem um novo livro, "Diário de um Adolescente na Lisboa de 1910", em que recria a vida de um jovem de 14 anos, filho de um republicano, neto de uma monárquica.

Quando a Escritaria falou comigo há meses, não tinha possibilidade nenhuma de escrever outros livro. Então, lembrei-me deste "Diário de um Jovem Adolescente na Lisboa de 1910" cujo esqueleto tinha nascido no “Jornal de Notícias”, onde trabalhava na altura, em 2010, quando foi do centenário da república. O meu chefe, o José Leite Pereira, tinha-me pedido meia página todos os sábados de Janeiro a 5 de Outubro sobre a república, para os miúdos. Eu achei: coitadinhos, que seca que isto vai ser! Então, lembrei-me de fazer um diário com um miúdo que anda muito baralhado com tudo o que acontece. Eu acho que a história tem graça, pelo menos os miúdos riem-se. Peguei nesse esqueleto e agora pus-lhe mais carne e surgiu este livro que agora é lançado aqui.

Quem é este José Joaquim com um diário bem-humorado?

O José Joaquim tem 14 anos porque me dava jeito. Com 14 anos, ele tinha 12 quando foi o regicídio, por isso já se lembrava e podia falar disso. Ele tem um percurso familiar complicado. Tem um pai profundamente republicano, uma avó profundamente monárquica, tem uma criada que namora um da Carbonária e ele foi aluno do Manuel Buíça, que foi um dos que mataram o rei e o príncipe. Aquela cabeça anda muito desvairada e não percebe muito bem o que está a acontecer. Deu-me uma trabalheira em termos de pesquisa.

Lembro-me que num dos capítulos em que mais uma revolução estava marcada para o dia 1 de Abril e o miúdo no diário diz: "Que raio de ideia marcar uma revolução para o Dia das Mentiras". E, de repente, parei e pensei: "Meu Deus do Céu, em 1910 já havia Dia das Mentiras?". Lá fui fazer pesquisa e sim, já havia Dia das Mentiras. Essas coisas pequenas dão trabalho.

Tem sempre esse cuidado com a pesquisa?

Acho que todos os que escrevermos coisas históricas temos de ter essa preocupação.

Tem visitado várias escolas de Penafiel. Visita uma média de 80 escolas por ano. Como é que vê as mudanças nos alunos de hoje em dia?

Em 40 anos muda tudo. São diferentes. Não vou fazer juízos de valor, mas vou a escolas com trabalhos extraordinários – é o caso destas aqui em Penafiel. Vou a muitas onde os miúdos falam e leram. Vou a outras onde não corre assim tão bem, mas isso, penso eu, tem a ver com o trabalho que se faz. Não se pode esperar que as crianças e os jovens tenham todos em casa famílias que lêem livros. É na escola que eles vão ser atraídos para essas coisas. Conheço professores extraordinários que realmente se esforçam imenso. É tudo uma questão de trabalho. Voltamos sempre ao trabalho! Se esse trabalho é feito com alegria e prazer os miúdos chegam lá.

Continua a haver jovens leitores do livro em papel?

Continua. Estou muito esperançada que o livro em papel ainda continue. Mas não me choca, porque são de outra geração, que eles leiam os livros em outros suportes. Eu não sou capaz de ler em vidro, mas eles são. Se eles lêem os meus livros em vidro, não me preocupa. O que eu quero é que eles leiam.

Escrever é comunicar, partilhar, relacionar-se com o outro. É um prazer?

Não se escandalize, mas escrever, para mim, é trabalho. Agora, penso que sou uma pessoa privilegiada porque o meu trabalho é aquilo que gosto mais de fazer. Sabemos que hoje as pessoas se têm trabalho já é muito bom e muitas vezes estão em coisas onde nunca pensaram trabalhar. Eu estou a fazer uma coisa de que gosto muito.

Tem horário de trabalho?

Claro. Às vezes, quando vou a uma escola, os miúdos perguntam "Em que é que se inspira?" E eu digo, não há melhor inspiração do que o nosso patrão dizer: "Preciso deste livro daqui a dois meses.” E é assim. Isto obviamente também é o jornalismo. Eu sou de pressão. Faço tudo. Se me dizem "é para quantos puder", nunca mais faço. Nós temos de trabalhar muito.

Sempre que acaba um novo livro tem já ideias para os próximos.

Tenho sempre essa exigência porque tenho quase sempre algum livro que está no princípio ou a meio. Agora não posso pensar em mais nada a não ser nesse livro para adultos para a Dom Quixote. Pertenço à Leya e trabalho para o grupo. Como diz um dos meus patrões, eu trabalho para todas as chancelas do grupo. Agora, vou acabar este livro e não posso pensar em mais nenhum enquanto não o acabar.

Diz que um dos marcos da sua vida foi ter sido convidada para integrar o grupo de 10 personalidades da cultura que foram cumprimentar o Papa Bento XVI no CCB, em 2010. Se tivesse a oportunidade de estar com o Papa Francisco, o que gostaria de lhe dizer?

Ele vem a Fátima e deveria vir também a Lisboa. A mim marcou-me muito o Bento XVI, mas se calhar aquilo que mais me marcou foi quando tinha 15 anos e fui a Roma e vi o Papa João XXIII. O sorriso dele, ele a passar por nós, aqueles olhos, não tem explicação. Acho que aquilo me marcou para o resto da vida. O Bento XVI, gostei que me tivessem convidado, trocámos umas palavras. Gostava muito de ver o Papa Francisco. Neste momento, Fátima está completamente cheia, mas pode ser que ainda consiga ir ver o Papa Francisco. Não lhe dizia nada porque acho que ele sabe tudo.

Disse numa entrevista que deveria assinar com heterónimo a poesia que escreve. Porquê? É outra Alice?

Quando eu digo que deveria assinar com um heterónimo é porque aquilo é tão diferente de mim, parece que é de outra pessoa. Até mesmo no processo de escrita. Eu escrevo tudo ao computador, menos a poesia. Escrevo em papel, com caneta, não tem nada a ver.

É um ritual?

Há todo um ritual. A poesia, de vez em quando, acontece, depois pára, depois volta.

Ainda tem muita poesia por publicar?

Espero… Tenho um livro quase pronto. É o quarto livro de poesia. Não sei ainda o título. Gosto de dar títulos de poemas de outras pessoas. O primeiro, "Dois corpos tombando na água", é do Tolentino Mendonça, "O que dói às aves" é um poema de Daniel Faria – tenho muita pena que as pessoas não saibam quem é! E o último, "Os armários da noite", é de um poema do Nuno Júdice. Portanto, neste momento ainda não sei como se vai chamar o quarto livro, mas está quase pronto.