Quem tem medo de Salazar em 2019?
18-09-2019 - 06:33

Para os críticos, musealizar Salazar é ofender as vítimas do Estado Novo e desprestigiar a democracia, branqueando o ditador.

O plano da Câmara Municipal de Santa Comba Dão de criar um “museu Salazar” suscitou uma guerra surda de abaixo-assinados contra e a favor. Em assuntos polémicos, os portugueses trocam a serenidade crítica pela emoção epidérmica. Para os críticos, musealizar Salazar é ofender as vítimas do Estado Novo e desprestigiar a democracia, branqueando o ditador e construindo um altar para romarias de saudosistas do autoritarismo.

Um museu Salazar não será nada disto. Como historiador, sou totalmente a favor da iniciativa, e nem preciso do eufemismo do “centro interpretativo”, com que parece que se pede desculpa pela ideia. Um bom museu é sempre um centro interpretativo, porque não amontoa peças, antes conta uma história. E na história que este particular museu precisa de contar – tal é a amnésia e a confusão de lugares-comuns sobre o que de facto foi o Estado Novo – tem de estar plasmada a complexidade da época, em todos os seus aspetos. Assim, a preocupação não deveria ser se ele deve existir, mas antes o que se pode e deve ali mostrar, posto que Salazar deixou muito pouco espólio pessoal e o espólio político-institucional já está tratado e integrado alhures.

Porque é isto que os apoiantes da iniciativa pretendem, preocupam-me as críticas cegas dos que se lhe opõem e ainda mais que o parlamento tenha votado uma resolução contra o dito projeto.

Os antissalazaristas arrogam-se hoje o direito de policiar a memória. Não aceitam que recordar não é homenagear e que estudar não é desculpabilizar. E não se dão conta, sequer, da contradição em que vivem, porque eles, mais do que os supostos saudosistas, deveriam ser os primeiros interessados em tal museu, para dar a conhecer aos que já só viveram a democracia o que era viver sem democracia. Isto para não falar da duplicidade de critérios típica da maioria das esquerdas: recusa-se o estudo público de Salazar (ou só se aceita fazê-lo pela cartilha do marxismo), ou aplaude-se a exumação do cadáver de Franco do Vale dos Caídos, mas nada se diz, por exemplo, sobre o mausoléu de Lenine, em Moscovo (esse sim, um verdadeiro altar laudatório de uma ideologia nada democrática).

Mais uma vez como historiador, não só acho que Salazar precisa de um museu, como considero que Franco e Lenine devem continuar onde estão – em nome do passado e da história, que é do que precisamos de cuidar. A glorificação de Lenine é parte da narrativa do comunismo, da mesma maneira que a sepultura de Franco é uma chave para a correta compreensão do franquismo. E a compreensão (informada pela história) é uma operação prévia ao juízo moralista e muito distinta deste. Dirão os críticos que uma democracia não pode conceder “espaço público” à memória das ditaduras. Pode e deve, sim, na medida em que isso contribua para clarificar o passado contra o qual se ergueram essas democracias. No fundo, o que se passa – tanto em Portugal, com os demolidores de Salazar, como lá fora, com todos os silenciadores de todo o passado que não (lhes) interessa – é que há sempre gente que quer mutilar e reescrever a história segundo cânones mais ou menos grupais. Sabemos que o passado e a história não são a mesma coisa. Todavia, se se esquecer ou falsear aquele quando se reconstrói, tentativamente, esta, nenhum dos dois se salva. E pior ainda acontece quando é de agendas mais ou menos ideologizadas do presente que se parte para a consideração de épocas anteriores à nossa. Quando assim sucede, adeus passado e adeus história, porque a verdade factual e a objetividade (que não sendo assética, não pode ser exclusivista) do discurso desaparecem na retórica míope dos intolerantes de serviço.