Ser pai é viver mais tempo
08-02-2019 - 06:54

A plasticidade do tempo está presente nas nossas vidas banais. Quando nos lembramos do passado, há meses com um eco de décadas e há anos que cabem num mísero dia. Isto torna-se ainda mais evidente quando somos pais ou mães.

Não sou fã incondicional das brumas de Sebald e das abstracções de Nolan, mas acabo quase sempre por ler os livros do primeiro e por ver os filmes do segundo. Ambos respiram através de uma ideia que me fascina: a plasticidade do tempo; o tempo enquanto variável material, palpável, moldável. O fascínio talvez tenha uma explicação óbvia: esta materialização do tempo tem um nome mais simples, eternidade. A eternidade não é o tempo extra e interminável que aparece depois da vida terrena; a eternidade não é mais tempo, está para lá do tempo; não é o pós-história, é a destruição da história. É, se quiserem, o tempo transformado num espaço. De resto, uma boa definição de Deus é precisamente esta: a entidade que molda o tempo da mesma forma que nós moldamos o espaço e a matéria; Deus toca no tempo tal como o oleiro toca no barro. Em “Interstellar”, Nolan retira a carga teológica a esta ideia, laicizando-a: é a própria civilização humana que – um dia – será capaz de actuar sobre o tempo da mesma forma que nós agora actuamos sobre o espaço. David Lynch, a partir do livro de Frank Herbert, envolveu-se na mesma ideia em “Dune”: civilizações que conseguem dobrar o espaço como uma folha de papel e que, em consequência, conseguem viajar no tempo.

Não pensem porém que esta reflexão é apenas para o território da abstracção e ficção-científica. A plasticidade do tempo está presente nas nossas vidas banais. Quando nos lembramos do passado, há meses com um eco de décadas e há anos que cabem num mísero dia. Isto torna-se ainda mais evidente quando somos pais ou mães.

Há dias, o actor Paul Dano disse que ser pai é duro mas “heart expanding”, ou seja, a dureza da paternidade é inegável e não há discurso cor-de-rosa que a apague, no entanto, essa dureza é um arado que revolve a nossa terra para criar algo novo. O nosso sonar emocional fica mais fino, sentimos a presença de mais coisas e sentimo-las com mais chama. Sentimos novos sentimentos, afectos e medos que não existiam na nossa tabela periódica das emoções. O nosso espaço emocional expande-se e, por isso, precisa de um mapa novo. E de um calendário, acrescentarei eu. Sou pai há sete anos, pai no plural há quatro. Mas parece que são catorze ou vinte. Cada ano como pai tem uma década lá dentro. Ou seja, ser pai também também é “time expanding”. Os dias são mais intensos, mais radicais, vamos mais fundo na frustração e na alegria, na ansiedade e no amor, sentimos uma nova fragilidade mas depois descobrimos que essa fragilidade pode ser uma força ou que é preciso coragem para mostrar fragilidade.

Ser pai é viver de facto mais tempo e, nesse sentido, é uma vitória sobre o tempo. Reparem que não estou a invocar aquela velha ideia de que os filhos são uma vitória sobre a passagem do tempo e sobre a finitude humana, pois garantem a nossa permanência no futuro através de netos e bisnetos. Não estou certo disso. Estou, porém, certo de outra coisa: a paternidade vence o tempo, porque consegue esticar o presente aqui e agora. Não é uma metáfora, é uma descrição literal: ser pai é viver mais tempo, até porque - nos melhores e piores momentos - sentimos que não estamos na história, sentimo-nos na obediência a um dever eterno muito superior à nossa biografia histórica. E isso sossega. Não, não é o sossego que deriva do cansaço atroz, é o sossego que nasce daquela certeza moral: estamos a fazer a coisa certa.