Stress induzido por notícias da guerra: "Tudo isto é muito novo e bárbaro ao mesmo tempo"
29-03-2022 - 07:20
 • Fábio Monteiro

O impacto da guerra na Ucrânia já se faz sentir nos gabinetes dos psicólogos portugueses. À terceira noite da guerra na Ucrânia, de tão perturbada com o jorrar constante de notícias, Marta já não conseguia dormir. “A palavra assoberbada é curta”, diz. Ordem dos Psicólogos defende dieta noticiosa e atenção aos conteúdos por causa das crianças.

Mais uma notificação sobre a guerra na Ucrânia. Mais uma fotografia de civis mortos, um vídeo de edifícios bombardeados e refugiados em fuga. Mais um protesto em Moscovo, seguido de uma onda de detenções e repressão policial. Mais um pacote de sanções da União Europeia e uma nova tomada de posição de Joe Biden. Mais uma reunião para negociações falhada. Mais uma declaração de Marcelo Rebelo de Sousa. Mais uma opinião de um especialista. Mais um avanço da Rússia em solo ucraniano – um aeroporto destruído, uma cidade tomada -, mais um discurso de Zelensky. E sempre mais uma notícia.

Desde 24 de fevereiro, qualquer consumidor assíduo de notícias que tenha umas quantas aplicações de órgãos de comunicação instaladas no seu smartphone, e as notificações ativadas, já terá reparado que este não tem parado de apitar e/ou vibrar. Na terça-feira, 15 de março, a Renascença, por exemplo, enviou 34 notificações, das quais 16 eram relativas a desenvolvimentos da guerra na Ucrânia. Momentos excecionais levam, claro, a fluxos noticiosos extraordinários.

Acontece que há pessoas para quem este brotar de notícias é excessivo e afeta a saúde mental. A cada notificação, os níveis de ansiedade e stress disparam, enquanto a empatia, pouco a pouco, desmorona. “Sinto-me assoberbada. Mas a palavra assoberbada é curta, acho que ainda não consegui encontrar a palavra certa. Tudo isto é muito novo e muito bárbaro em simultâneo”, confessa Marta Rebelo, 44 anos, especialista em comunicação e antiga deputada pelo PS, à Renascença.

À terceira noite do conflito na Ucrânia, de tão perturbada com o jorrar constante de novidades e de fazer "scroll" nas redes sociais, Marta, que durante “quase toda a década dos 30” viveu com uma depressão, já nem conseguia dormir. “Achava que Kiev ia ser invadida nessa noite e era como se, de facto, no meu cérebro, eu impactasse de alguma forma por estar acordada”, conta.

Curiosa com o que estava a experienciar, Marta foi pesquisar na internet se aquilo que estava a sentir tinha um nome. E sim. Desde 2017, há um possível diagnóstico: “Headline Stress Disorder” (Stress Induzido por Notícias, numa tradução livre). “Para muitas pessoas, os alertas contínuos de órgãos de comunicação, blogues, redes sociais e ‘factos alternativos’ são sentidos como explosões de mísseis num cerco sem fim”, escreveu Steven Stosny, o psicólogo norte-americano que cunhou o termo, num artigo da revista “Psychology Today”.

Em Portugal?

Stosny apercebeu-se deste fenómeno nos relatos dos seus pacientes durante o período que antecedeu as eleições nos Estados Unidos, em 2016, quando Donald Trump foi eleito. Nunca, “em 30 anos de prática”, havia recebido tantas pessoas perturbadas com o fluxo noticioso. Volvidos cinco anos, vivida uma pandemia (e infodemia), umas novas eleições acicatadas nos EUA, o diagnóstico tornou-se ainda mais presciente.

Formalmente, o “Headline Stress Disorder” ainda não é reconhecido em Portugal ou qualquer outro país. Ao nível internacional, o número de artigos científicos sobre o tema ainda é também muito reduzido. Mas Mauro Paulino, psicólogo clínico e forense, também consegue identificar o mesmo fenómeno junto dos seus pacientes.

Desde o início do conflito, algumas das pessoas que acompanha – devido a outras condições – “verbalizam uma maior saturação, maior desgaste fruto desta exposição continuada à guerra. É como se isso adensasse mais o peso que de alguma forma carregam”, conta.

Os pacientes de Mauro deram por si a ver os especiais de guerra em catadupa e a não ter capacidade de digerir toda a informação. “Começavam a consumir um debate que estava a dar à tarde, depois outro à noite, e assim sucessivamente. E apesar de aquilo lhes estar a causar sofrimento, acabavam por não conseguir cessar o consumo de informação”, diz.

Em declarações à agência Lusa, no sábado, João Bessa, Presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental (SPPSM), deixou o mesmo alerta: o impacto das noticias sobre a guerra na Ucrânia na saúde mental dos portugueses já se está a sentir na prática clínica.

“Ainda não há dados concretos, mas estamos a observar na prática clínica uma repercussão a esta exposição, nomeadamente nas questões relacionadas com a ansiedade e é importante, dentro da nossa comunidade, amizades e seio familiar, estar atento ao impacto nas pessoas”, disse.

Consumir com moderação

Marta Rebelo conhece-se. Como já viveu uma depressão, diagnosticada pela primeira vez aos 26 anos, está desperta para questões de saúde mental. “Temos a mania de que o que se passa nas nossas cabeças é muito único, mas a minha experiência é que sentimos todos a mesma coisa. É extraordinário como é repetitivo”, diz.

Em fevereiro, assim que se apercebeu que estava a descompensar, por causa do consumo de notícias sobre a guerra na Ucrânia, teve uma conversa consigo própria: “Minha amiga, tu não vais ficar doente. Os teus níveis de ansiedade disparam, não consegues dormir, não consegues produzir. E não vais mudar absolutamente nada no decurso da guerra por estares a entrar nesse registo.” (Mais tarde, escreveu uma crónica para a revista “Visão” a relatar a sua experiência e descoberta.)

Sozinha, tomou a iniciativa de impor uma dieta: “Comecei a limitar o meu acesso a informação.” Deixou de ver ou ouvir notícias logo de manhã; de acordar e “fazer 'scroll'” nas redes sociais – o que não foi fácil, tendo em conta que são parte essencial da sua vida profissional. “Isto [a guerra] vai durar muito tempo e eu quero continuar a sentir-me indignada como estou a sentir-me”, explica.

A opção de Marta foi acertada: uma dieta noticiosa equilibrada em tempos de guerra é essencial para salvaguardar a saúde mental, defende a Ordem dos Psicólogos (OP). Ainda na semana passada, a OP emitiu uma série de recomendações destinadas aos órgãos de comunicação (mas não só) sobre como dar notícias sobre a guerra.

À Renascença, Sofia Ramalho, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos, sublinha que “Headline Stress Disorder” ainda não é um diagnóstico reconhecido. Todavia, nota, “a exposição a situações traumáticas não se faz só por via direta, no evento em si, mas também por via indireta, através dos meios de comunicação, redes sociais ou outras formas de comunicação”.

Um indivíduo pode, por isso, “desenvolver sintomatologia de stress pós-traumático, recorrência de imagens mentais” mesmo sem nunca ter presenciado os acontecimentos, só de ler ou ver notícias. Pode “ter problemas de insónia”, começar a sentir-se ansioso ou deprimido, com acontece com Marta.

De acordo com Sofia Ramalho, os jornais e televisões devem ter em atenção que quando comunicam “estão a suscitar sentimentos do outro lado”. Devem, então, ter uma “comunicação de risco controlada”; na televisão, por exemplo, moderar o número de vezes que passam ou divulgam alguns conjuntos de imagens.

Uma das preocupações principais, defende a especialista, devem ser as crianças: “têm uma perceção de risco muito aumentada”, percecionam o risco de forma “permanente, como que se estivesse a acontecer a toda a hora”.

No gabinete de Mauro Paulino, uma mãe já desabafou: “Até a minha filha com quatro anos já olha para a televisão e diz: 'está tudo estragado'.” Para o psicólogo clínico, “sem minimizar a guerra”, é preciso “normalizar o sentimento da criança”. Ao mesmo tempo, reduzir a exposição às notícias ao mínimo, em particular às mais novas – do pré-escolar ao ensino primário.

Os limites e a duração da empatia

Uma dieta de notícias equilibrada – duas vezes por dia, recomenda Sofia Ramalho - é importante não só por questões de saúde mental. É essencial para suster a empatia e interesse pelo que se passa na Ucrânia. Afinal, as guerras costumam durar meses e, na maior parte dos casos, anos.

A invasão da Ucrânia pela Rússia começou há um mês. A batalha por Kiev ainda não principiou e tem tudo para demorar. Uma comparação para contexto: só a batalha da Rússia por Grózni, capital da Chechénia, durou quatro meses: de dezembro de 1994 a março de 1995.

Segundo a vice-presidente da Ordem dos Psicólogos, manter a empatia com a situação da Ucrânia durante um período prolongado de tempo depende de três elementos: a quantidade de notícias, a intensidade e a continuidade no tempo. “Qualquer um destes ingredientes em excesso vai provocar precisamente uma espécie de dessensibilização”, diz.

Apesar de ter de moderar o consumo, Marta Rebelo quer que os órgãos de comunicação continuem a falar da Ucrânia. E também não quer deixar de estar mobilizada – mesmo que isso seja um reflexo humano, com o passar do tempo. “Hoje já não tenho a vontade de ouvir o Zelensky como tinha há uma semana. Não é que não o queira ouvir. Não é que não ache exatamente o mesmo que há uma semana, mas já não consigo estar constantemente a ler. Percebi que tinha de parar, porque quero continuar a admirar aquela pessoa”, diz.