​Associação de Bioética: Em caso de rutura dos cuidados intensivos "todas as vidas têm a mesma dignidade e direitos"
27-03-2020 - 15:19
 • Maria João Costa

Presidente da Associação Portuguesa de Bioética pede um quadro ético bem definido para a priorização do socorro a doentes Covid-19 nos cuidados intensivos.

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De Espanha surgem relatos de médicos que, face à rutura do sistema de saúde, denunciam ter de fazer escolhas sobre que doentes internar nos cuidados intensivos. Há denuncias de que estão a ficar de fora aqueles que têm menos esperança de vida, por terem mais idade e outras patologias associadas. Perante o que está a acontecer no país vizinho, a Associação Portuguesa de Bioética alerta para a necessidade de Portugal definir, num quadro ético, os critérios de internamento.

Em entrevista à Renascença, o presidente da Associação Portuguesa de Bioética (APB), Rui Nunes, pede que, “atempadamente”, se definam critérios “claros e transparentes” para internar doentes de Covid-19 nos cuidados intensivos.

Rui Nunes considera “inadmissível que se coloque o critério idade como critério absoluto de admissão, porque todas as vidas têm a mesma dignidade e direitos, portanto, tem de haver uma abordagem dos doentes como um todo”.

Para a APB, é urgente antecipar a possibilidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS) não conseguir dar resposta atempada a todos os doentes infetados pela Covid-19 que necessitem de ser internados nas unidades de Cuidados Intensivos.

“A última coisa que se deseja é, como diz o povo, ‘cada cabeça sua sentença’. Ou seja, atempadamente um grupo de trabalho mandatado pelas autoridades de saúde deve determinar quais são estes critérios claros e transparentes” sustenta Rui Nunes.

Não pode, no entender destes profissionais, haver critérios “arbitrários em que um hospital faça isto e o outro faça aquilo”. Rui Nunes refere que “é uma decisão muito crítica e muito dura para os profissionais de saúde e para os médicos em particular selecionar doentes”.

O presidente da APB sublinha que “é do interesse dos médicos e dos doentes que existam estas linhas de orientação do ponto de vista da priorização ética para que não se tenha de recorrer ao racionamento arbitrário como está a acontecer em alguns países”-

Ordem dos Médicos está já a trabalhar nos critérios

Ana Sofia Carvalho, professora e diretora do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa revela à Renascença que a Ordem dos Médicos já está a tratar de preparar critérios para a priorização dos internamentos.

Esta docente aponta que, na sua opinião, “o Governo e a Assembleia da República deveriam ter envolvido o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida em toda esta situação”. “É verdadeiramente a estrutura nacional que deveria ter sido envolvida numa circunstância desta natureza”, refere Ana Sofia Carvalho que indica que o Conselho deveria estar num gabinete de crise de resposta à pandemia.

Perante a proposta da APB, Ana Sofia Carvalho fala “numa decisão eminentemente ética” e diz ter conhecimento que “a Ordem dos Médicos vai publicar um conjunto de guias.” Membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, esta professora explica que “o parecer da Ordem dos Médicos terá realmente um caráter geral e nacional que é de toda a importância”.

Quais são os critérios que os profissionais da bioética defendem?

Caso a procura seja acima das capacidades de resposta das unidades hospitalares, a APB sublinha que é importante haver critérios definidos. No comunicado, divulgado esta sexta-feira, a associação inúmera os critérios éticos de priorização na admissão de cuidados intensivos:

1. Respeito pelo valor intrínseco da pessoa humana, pela sua dignidade e direitos fundamentais. O que implica:

a) Valorização do paciente como um todo, e não a doença de forma isolada, incluindo a perceção de gravidade por parte do médico e a gestão global dos recursos disponíveis;

b) Igualdade e não discriminação em razão de qualquer característica arbitrária, como a nacionalidade, o género, a etnia, ou a idade cronológica (a idade por si só não deve ser, em caso algum, o único elemento a considerar nas estratégias de priorização);

c) Respeito pela vontade previamente manifestada através de uma Diretiva Antecipada de Vontade (Testamento Vital ou Procurador de Cuidados de Saúde) sendo recomendável a consulta ao RENTEV.

2. Partilha do processo de tomada de decisões entre a equipa de saúde, o doente e a família, sendo de promover, entre todos, uma comunicação franca e transparente, dada a natureza extraordinária da situação.

3. Existência de critérios claros, explícitos e transparentes de priorização na admissão a cuidados intensivos:

a) Estes critérios devem ser consensuais, aprovados pelas associações profissionais representativas, e universalmente implementados em todo o território nacional, independentemente de se tratar de uma unidade do setor público, privado ou social;

b) Face a situações de escassez de recursos e à impossibilidade de admissão de todos os doentes que necessitem de cuidados intensivos, deve valorizar-se a maximização da sobrevivência até à alta hospitalar, a maximização do número de anos de vida salvados, ou a maximização das possibilidades de viver cada uma das etapas da vida;

c) Deve dar-se especial atenção a pacientes críticos e instáveis que necessitam de monitorização e tratamento intensivo que não possa ser proporcionado fora de uma Unidade de Cuidados Intensivos;

d) Deve ter-se em consideração o princípio do custo de oportunidade: admitir um paciente pode implicar negar a outro a admissão – evitar, portanto, como regra absoluta o critério “primeiro a chegar primeiro a admitir;

e) Ponderar, numa situação de absoluta escassez de recursos e equipamentos, a admissão de pessoas em que se preveja um benefício mínimo – tal como situações de fracasso multiorgânico estabelecido, risco de morte elevado calculado por escalas de gravidade, situações funcionais muito limitadas, ou condições de fragilidade muito avançada.

f) Aplicação destes critérios de um modo uniforme a todas as pessoas – e em todos os hospitais públicos, publicamente financiados, do setor privado ou social – e não de forma seletiva a doentes de idade ou com patologias crónicas.

4. Planeamento de ações de suporte psicológico aos doentes, familiares e profissionais, dado o impacto emocional e o distress moral de decisões éticas de elevada complexidade;

5. Acompanhamento da aplicação destes critérios pelas autoridades de saúde e entidades reguladoras, bem como supervisão do usufruto dos demais direitos dos doentes.

A APB que hoje torna públicos estes critérios, confirma que os vai fazer chegar às autoridades de saúde. Estes profissionais da bioética explicam que “todo o sistema de saúde deve reagir em bloco”, porque os portugueses têm “de estar tranquilos” de que “temos um bom sistema de saúde e que, se por ventura, houver uma procurar superior à oferta, as pessoas vão ser tratadas da mesma forma, não vai haver juízos discriminatórios, seja pela idade ou outra caraterística que não esteja em consonância com o que temos defendido ao longo das décadas no nosso país”.

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