O ódio contra a Igreja enquanto sistema de conhecimento
12-11-2021 - 07:57

Para muitas mentes desta soberba moderna, o ódio à Igreja Católica funciona como sistema de conhecimento, isto é, basta odiar, basta transmitir os preconceitos e mitos do costume sobre a igreja para se ficar com a imagem "correta" da história. Essa imagem pode ser politicamente correta, mas está longe de ser historicamente correta.

A Idade Média e a própria palavra "medieval" são usadas como sinónimos de irracionalidade e violência. Mas será mesmo assim? É impossível sustentar que a Idade Moderna, com as suas guerras de religião, foi menos tolerante e sanguinária do que a Idade Moderna. É impossível sustentar que a nossa Idade Contemporânea (I Guerra, II Guerra, nacionalismos, comunismo e fascismo) é menos violenta e intolerante do que a Idade Média. Impossível. Aliás, objectivamente, os modernos foram mais violentos e intolerantes do que os homens da idade média, que, na sua modéstia, nunca teriam o descaro de conceber programas de extermínio em massa, por exemplo.

Como salienta Seb Falk no livro “A Idade Média – a Verdadeira Idade das Luzes”, o mito da violência e da irracionalidade ímpar da Idade Média deriva da ignorância e da soberba “moderna” e deriva sobretudo do ódio à Igreja Católica - a força que reergueu a Europa durante a Idade Média. Para muitas mentes desta soberba moderna, o ódio à igreja católica funciona como sistema de conhecimento, isto é, basta odiar, basta transmitir os preconceitos e mitos do costume sobre a igreja para se ficar com a imagem "correta" da história. Essa imagem pode ser politicamente correta, mas está longe de ser historicamente correta.

As duas grandes correntes que lideraram a era moderna e era contemporânea, no fundo, as duas correntes que construíram as “narrativas modernas” são as seguintes: a reforma protestante, sobretudo quando embalada pelo mundo anglo-saxónico (Londres no século XIX, Washington no século XX), e o ateísmo à francesa. “Ser moderno” implica uma de duas coisas: ser ateu dentro da linha do racionalismo francês ou ser protestante anglo-saxónico.

Recorde-se que a nossa Geração de 70, sobretudo Antero, preferia a linha francesa mas não se importava com o protestantismo, que via como o bom cristianismo, por oposição ao catolicismo.

Ora, qual é o ódio comum que une ateísmo à francesa e protestantismo anglo-saxónico, as duas correntes que lideraram as narrativas dos últimos duzentos anos? O ódio à igreja católica. Neste quadro anti-Roma, era evidente que a idade média, os mil anos em que a igreja criou a Europa após o fim do império romano, tinham de ser mantidos dentro da mitologia da “era das trevas”. Mas como é que a era que assistiu ao nascimento das universidades pode ser das trevas? Como é que a era que adotou os numerais hindu-árabes e que traduziu obras clássicas e árabes pode ser vista como uma treva? Como é que uma era fascinada pela astronomia podia ser das trevas? Como fica claro e demonstrado no livro, a idade média foi tudo menos uma era de escassa curiosidade científica. A fé dos homens levava-os a tentar compreender (com os meios e teorias que tinham) o mundo à sua volta. Claro que havia choques entre curiosidade científica e os poderes da igreja e do estado, mas não menos do que noutras eras. Repare-se como os dois casos mais famosos usados nas teorias que tentam demonstrar a incompatibilidade mortal entre fé e razão, Galileu e Giordano Bruno, não são da Idade Média, já são da Idade Moderna marcada pelas fricções entre a reforma e a contra-reforma.

Portanto, a palavra “medieval” não devia ser usada para denegrir e para simbolizar algo visto como atrasado, intolerante ou violento, porque a idade média (não estamos a falar das “idade das trevas” dos filmes; estamos a falar da idade da reconstrução da Europa após o fim do império romano) não foi mais sangrenta do que as idades modernas que se seguiram. Com que topete pode o século XX, por exemplo, olhar para trás e dizer que a era contemporânea é mais tolerante e menos violenta e menos atrasada do que a idade média liderada pelas igrejas e monges?