​Abusos sexuais na Igreja: “É o Ministério Público quem tem de decidir o que faz ou não faz”
02-03-2022 - 07:00
 • Maria João Costa

Em entrevista à Renascença, Álvaro Laborinho Lúcio, membro da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja Católica Portuguesa, confirma que caberá ao Ministério Público “decidir o que faz” com os casos. Os trabalhos estão numa fase “muito embrionária” e não podem “começar a ter pré-conclusões”.

“É o Ministério Público quem tem de decidir o que faz ou não faz” aponta Álvaro Laborinho Lúcio. Em entrevista à Renascença, na primeira vez que fala publicamente sobre os trabalhos da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja Católica Portuguesa a que pertence, o ex-ministro da Justiça esclarece que todos os casos, mesmo denúncias que “não têm hipótese de ser ativadas”, irão ser avaliadas pelo Ministério Público.

Numa fase em que os trabalhos da Comissão vão passar aos inquéritos, entrevistas e investigação nos arquivos da igreja, Laborinho Lúcio faz questão de sublinhar repetidas vezes que a comissão está a fazer “um estudo”. O responsável acrescenta que no que chegou à comissão têm “a identificação de pessoas, nuns casos como abusadoras, noutros casos de épocas em que num determinado lugar os abusos aconteceram, embora a identificação não esteja patente”.

“A Comissão não vai fazer investigação criminal, nunca. A Comissão não trabalha com denúncias, trabalha com testemunhos. Tudo aquilo que nos é dirigido, e a experiência que temos até agora com pouco mais de um mês de atividade, é significativo. Tem qualificação de natureza criminal, na esmagadora maioria dos casos com prescrição. Noutros eventualmente não.”, esclarece Laborinho Lúcio.

Sobre os casos que já possam ter prescrito, Laborinho Lúcio aponta: “aquilo que entendemos que devemos fazer é, dar conhecimento disto ao Ministério Público. É o Ministério Público quem tem de decidir. O facto de eu ser jurista permite-me ter uma leitura tecnicamente mais qualificada, mas não me dá nenhum poder de decisão. Portanto, mesmo que tenha a certeza de que uma determinada circunstância não tem hipótese de ser ativada pelo Ministério Público, não sou eu, ou a comissão, quem vai decidir isso”.

Segundo o também juiz conselheiro a comissão está perante “uma grande complexidade também de natureza jurídica”. Laborinho Lúcio lembra que não devem “cair na tentação de nos substituirmos nós, às instâncias que têm do ponto de vista do Estado democrático o poder de decisão”.

“Não podemos começar a ter pré-conclusões”

Os trabalhos dos quais fazem parte também o pedopsiquiatra Pedro Strecht, o psiquiatra Daniel Sampaio, a socióloga Ana Nunes de Almeida, a assistente social e terapeuta familiar Filipa Tavares, e a realizadora Catarina Vasconcelos estão ainda “numa fase muito embrionária”, refere Laborinho Lúcio.

“Não podemos começar a ter pré-conclusões a partir da informação que já recolhemos. Vamos elaborando trabalho, vamos passar agora à fase dos inquéritos que são conduzidos por nós próprios através de entrevistas, do conhecimento dos arquivos da Igreja relativamente a estas matérias”, explica o jurista sobre a continua recolha de material que tem em vista a elaboração do relatório a ser entregue no final do ano.

O estudo irá permitir, detalha Larinho Lúcio “que olhemos a situação tal como ela foi acontecendo, que a projetemos através de critérios objetivos para a dimensão que ela realmente terá tido”. Este trabalho terá também como objetivo identificar “causas ou fatores que conduziram a estas situações” refere o jurista que diz que a comissão quererá também reunir “sugestões que possam levar a prevenir o futuro e promover algumas alterações”.

“Não estamos a fazer um estudo contra a Igreja”

Nesta entrevista à Renascença, Álvaro Laborinho Lúcio faz questão de destacar que a comissão está a trabalhar “num terreno muitíssimo melindroso”. Voltando a reafirmar a independência da comissão, o juiz conselheiro, lembra que este grupo de trabalho nasceu da vontade da Conferência Episcopal Portuguesa “que o fez na linha de tomada de posição inequívoca do Papa”.

“É nossa perspetiva que este estudo pode contribuir decisivamente para que se restaure a confiança na Igreja, na medida em que a Igreja está envolvida neste processo e ela própria quer que este processo seja verdadeiro e vá até ao fim”, indica Laborinho Lúcio que conclui: “Não estamos a fazer um estudo contra a Igreja, pelo contrário”.

“Não sei se todos estão de acordo com isso, nem se dentro da Igreja todos pensarão assim”, admite o ex-ministro que destaca que não têm “nenhum tipo de dependência que leve a ter quaisquer dificuldades para chegar à verdade”.

Para alcançar esse objetivo, Laborinho Lúcio lembra que há “dois princípios fundamentais”. Por um lado, “a aceitação de que não há daqui nenhum tipo de leitura crítica contra a Igreja no seu todo, pelo contrário, há a necessidade de identificar um problema que tem evidentemente uma expressão significativa, mesmo quantitativamente e isso é bom não lhe virar as costas”. Em segundo lugar, diz “não há necessidade de andar a perseguir A, B ou C. Isso depende das instâncias do Estado que decidirão o que há a fazer”.

Remetendo mais uma vez para o Ministério Público, Laborinho Lúcio volta a referir que o estudo que fará o diagnóstico é o fim último do trabalho da comissão. “Fundamentalmente será um estudo que nos mostra as realidades, e que nos permita em respeito pelas vítimas - que é muito importante ter isso em conta - encontrar mecanismos de prevenção para o futuro”, diz em declarações à Renascença.

“Num abuso sexual, a vergonha deve estar sempre do lado do abusador”

Lembrando que “num abuso sexual, a vergonha deve estar sempre do lado do abusador. Nunca pode estar do lado do abusado”, Laborinho Lúcio volta a apelas às “vítimas ou pessoas que tenham conhecimento de situações desta natureza” que respondam ao inquérito da comissão.

Na página darvozaosilencio.org ou através das linhas telefónicas, essas denúncias têm a “garantia de anonimato”, sublinha o juiz conselheiro. Laborinho Lúcio termina lembrando que “o fundamental é que as vítimas não se escondam e sobretudo que não tenham vergonha”.

“Muitas vezes, contar a sua história com a garantia de anonimato é permitir que várias outras vítimas que não têm ainda a determinação para se poderem expor, ainda que anonimamente, o façam. É um contributo absolutamente decisivo para que nós possamos chegar a bom-porto, levar a Carta a Garcia e erradicarmos, se for caso disso, da Igreja Católica um lado que é profundamente negativo, mas que a própria Igreja está interessada em superar”, explica Laborinho Lúcio.

Sobre críticos que se possam levantar sobre os trabalhos em curso, Laborinho Lúcio aponta serem “infelizmente aqueles que reforçam o lado negativo e que pretendem que haja um certo ocultismo à volta disto, o que francamente deixará da Igreja uma imagem muito pior do que aquela que terá, se ela vier a ser confrontada com a realidade que aconteceu, e que está na disposição de superar”, remata.