​Acender as luzes
27-09-2019 - 07:09

À noite, quando olhamos para o céu estrelado, há duas posições possíveis. A cínica diz-nos que está escuro. A posição de Nuno Costa Santos diz-nos, Sim, pá, está escuro, mas alguém está a acender as luzes!

Uma pastoral da cultura não procura necessariamente autores ou livros católicos. Encostada ao evangelho e não à beatice, uma pastoral cultural pode e deve sair do perímetro da fé e vaguear pelas margens à procura de irmãos.

O romance “Céu Nublado com Boas Abertas”, de Nuno Costa Santos, é um bom exemplo. Não sei como está a fé do autor, nem isso interessa, porque este livro é um escudo contra a impiedade do cinismo vigente. “Hoje as conversas com o divino são quase inexistentes”, diz o narrador. “O Deus da minha geração não existe. A existir, hipótese remota, gozável, demolível ao primeiro dichote, é no mínimo irónico, pós-moderno, desconstrutivista”. Quem fala assim não é gago e não é imune à dimensão transcendente do ser humano.

O livro conta duas histórias. A primeira é a história clássica do migrante que regressa à terra natal. O narrador, radicado em Lisboa, volta aos Açores (São Miguel) para se confrontar com um vazio de identidade. Não se sente lisboeta, mas também já não se sente açoriano; pelo menos, sabe que os locais não o vêem como um açoriano quimicamente puro. Neste sentido, “Céu Nublado com Boas Abertas” fez-me lembrar o meu “Alentejo Prometido”, pois revela um narrador perdido entre sentimentos de pertença num país estilhaçado por classes e regiões. O narrador é destratado como “fifi” (um betinho, um privilegiado) e como “português” (isto é, como alguém que abandonou as ilhas).

A segunda história do livro é a recordação do avô do narrador, um homem que sofreu um dos grandes flagelos dos nossos antepassados: a tuberculose, a vida nos sanatórios.

Ao longo destas duas histórias, fica-se muitas vezes com uma sensação de circularidade quase pós-moderna. Por vezes, o leitor sente que a história não avança, sente que o movimento exterior e interior do narrador está preso em areias movediças. Mas, com o tempo, percebe-se o porquê desta atmosfera: não resulta de qualquer literatice pós-moderninha; nasce, isso sim, da franqueza e da fragilidade melancólica do narrador.

Este não é um narrador impositivo que leva tudo à frente. Não. Vamos sentindo a sua dor. Ele, o narrador, é um de nós; senta-se ao lado dos leitores. Estamos juntos, ele e nós, estamos todos à mercê dos elementos naturais, vulcões e terramotos, e dos elementos humanos, a ira e a solidão. No fundo, vamos sentido a salutar incapacidade que ele tem para lidar com o cinismo que o rodeia.

E talvez seja esta a ideia principal. Ler este e outros livros de Nuno Costa Santos é ficar seguro de que a bondade existe no mundo; por muito frágil que seja, ela, a bondade, sobrevive no meio do sofrimento e do mal. Não nos rendamos por isso ao cinismo que só vê o escuro e que, devido a uma preguiça congénita, recusa levantar-se para ver as luzes que se acendem aqui e ali. À noite, quando olhamos para o céu estrelado, há duas posições possíveis. A cínica diz-nos que está escuro. A posição de Nuno Costa Santos diz-nos, Sim, pá, está escuro, mas alguém está a acender as luzes!