“Não quero salvar o mundo sozinha. É Deus que me envia a lá estar”
11-01-2018 - 16:08
 • Ângela Roque

Joana Gomes veio passar o Natal a casa, mas na próxima semana regressa ao Chade para mais um ano de missão. Coordena um projecto educativo do Serviço Jesuíta aos Refugiados, e tem só a seu cargo 15 mil alunos.

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Foi há um ano que Joana Gomes partiu para o Chade pela primeira vez. Formada em Serviço Social, já tinha sido voluntária numa favela brasileira e a ajudar refugiados em Espanha e na Sicília, mas em África esperavam-na mais dificuldades do que tinha imaginado. Viver ali, diz, é “uma aventura constante” de inesperados, diz.

Em entrevista à Renascença conta como teve de aprender a sobreviver com quase nada, a medir o tempo de outra forma e a saber esperar. Explica que decidiu prolongar a missão por mais um ano porque “é lá que Deus quer que esteja”, mas que os planos de futuro passam por ir ajudar num local de conflito ou guerra. E fala da lição de vida que tem sido o convívio “pacífico e respeitoso” entre cristãos e muçulmanos.

Prepara-se para partir por mais um ano para o Chade. Isso quer dizer que se envolveu mesmo de corpo e alma nesta missão?

Sim. Acho que nunca me senti tão bem na minha vida. É um sítio, uma missão e um trabalho onde pus todos os meus dons a render, e percebi que fazia sentido continuar. Ainda tenho muito para dar e muito para aprender.

O que é que a marcou mais neste ano?

Foi a diferença cultural. Viver num país muçulmano, em África, com tudo o que isso significa em termos de formas de pensar diferentes, formas de estar, de comer, a língua, a religião. É um estilo de vida muito diferente, em que as coisas têm o seu tempo, não há correrias. Como faz muito, mesmo muito calor, as coisas têm que se adaptar ao clima e ao momento do dia. Acho que esse foi o maior desafio, esta diferença cultural relacionada com as poucas condições de vida – não ter água canalizada, não ter electricidade 24 horas por dia, uma internet que falhava, uma casa que deixa entrar chuva, onde entram ratos e há imensos bichos. Foi um desafio muito grande de conforto e de bem-estar, mas também me ajudou a ligar mais ao essencial.

Quais foram as maiores dificuldades?

No início foi a alimentação, porque vivo numa aldeia muito pequenina e estou muito sujeita ao que há no mercado ao Domingo, ou à estação do ano. Houve uma altura em que só comia manga, depois só comia melancia, depois só comia goiaba. Na época das chuvas – há três meses de chuva intensa – as estradas ficam cortadas, nascem rios do nada e os alimentos não chegam à aldeia, e foi muito difícil, tive que pedir que me mandassem comida, porque já estava nos limites. Posso dizer que viver no Chade é uma aventura constante.

Porquê?

Eu passo os dias entre duas aldeias, Gozbeida e Koukou, onde tento ir todas as semanas, mas há sempre imprevistos… Quando chove muito ou não conseguimos circular, ou corremos o risco de ficar atolados – eu por duas vezes fiquei bloqueada um dia inteiro –, ou voltar a casa e ver que o gerador explodiu. Quando chegaram as primeiras tempestades levaram o telhado da minha casa e encheram o meu quarto de água… Até brincaram comigo a dizer “devias ter sido mais específica sobre o local onde querias a piscina”, porque na altura do calor o que eu mais desejava era uma piscina! É tudo uma aventura, e temos de estar mesmo preparados para tudo.

Quando regressar vai continuar a trabalhar com refugiados?

Vou continuar a coordenar os projectos do JRS (Serviço Jesuíta aos Refugiados) em dois campos e numa vila. Estou a coordenar uma equipa de 20 pessoas e todos eles são chadianos, eu sou a única mulher branca, a única estrangeira.

Isso foi um problema?

Às vezes. Embora eu não me sentisse diferente, e até me esquecesse disso, havia quem tivesse medo de mim por ser branca, crianças que choravam quando me viam, vinham-me tocar e depois olhavam para as mãos delas para ver se tinham mudado de cor, as raparigas tocavam-me muito nos cabelos porque são claros. As mulheres olhavam-me com um ar de fascínio, mas também de medo. A única maneira de ultrapassar isso foi deixar-me ser tocada e deixar que me olhassem. Acho que agora vai ser igual quando voltar, vão continuar a pensar que eu sou estranha.

Nos campos de refugiados onde trabalha vivem sobretudo sudaneses?

Sim, são do Sudão, estão há 12 anos a viver no Chade. Um dos campos, que se chama Djabal, tem 20 mil refugiados, o outro, Goz Amir, é o segundo maior campo no leste do Chade e tem 33 mil refugiados. A outra vila, Kerfi, é um projecto piloto das Nações Unidas, não é exactamente um campo de refugiados, vivem lá chadianos e sudaneses, e tem cerca de três mil pessoas. Os projectos que o JRS desenvolve são sobretudo ao nível da educação, estamos a coordenar todo o sistema educativo nesses campos de refugiados. Só a meu cargo tenho 15 mil alunos entre estes três campos.

Tem muita gente a ajudá-la?

São cerca de 260 professores. É o staff do JRS do Chade que faz o apoio e a supervisão educativa. Como não ficaremos lá para sempre estamos já a começar com uma estratégia de saída, criando pequenos negócios para que as escolas ganhem o seu próprio dinheiro e consigam ser autónomas. Existem também projectos importantes de desenvolvimento das mulheres, que são quem faz tudo na realidade africana, tomam conta da casa, trabalham, vão buscar os filhos à escola, mas também são as que têm menos estudos e competências. Queremos dar-lhes cursos de alfabetização e ensinar-lhes a fazer pão e biscoitos para que possam vender isso e ter o seu próprio rendimento.

Dar autonomia às pessoas é um dos objectivos dos projectos do JRS. Sentiu que fazem a diferença?

Fazemos a diferença na forma como estamos no terreno. Criamos relação com as pessoas, e acho que a grande chave da nossa intervenção é que não fazemos “por elas”, mas fazemos “com elas”. Eu sinto que fazemos a diferença quando pergunto a uma professora se é casada e tem filhos e ela me diz “não, eu quero ir para a faculdade antes de ter família”. Essa resposta já valeu o meu dia, já valeu o meu ano!

E alguma vez se sentiu impotente?

Sim, muito. Também temos um projecto relacionado com a protecção de crianças órfãs, ou que estão sozinhas porque os pais não têm condições para tomar conta delas, ou não sabem como. E foi aí que que eu senti maior impotência. Vimos vários bebés ou crianças morrerem porque os pais não acreditam na medicina e não vão ao centro de saúde. Um bebé de dois meses tinha uma perna amputada, porque o pai viu uma ferida na perna, não sabia o que fazer e amputou a perna. Se tiverem de levar um filho para ser operado na capital, não vão. Na verdade a vida dos filhos não é um bem maior para eles, e isso choca-me muito ainda. Não consigo ser indiferente.

Há um ano dizia-me que o que mais a fascinava eram as pessoas. Continua a ser assim?

Continua. E como ali a maioria dos refugiados são muçulmanos ainda me fascinam mais. Aprendi imensas coisas sobre a religião muçulmana, já tive imensas discussões sobre o ramadão, o papel da mulher, da família, porque é que rezam cinco vezes ao dia. Preciso de perceber para aceitar, porque lá vou vivendo isto muito intensamente, os feriados no Chade são os feriados muçulmanos, e eu vivo ao lado de uma mesquita e acordo todos os dias às cinco da manhã com o imã da mesquita a rezar.

Em termos de fé há um convívio pacífico?

Pacífico e muito respeitoso. No meu staff temos muçulmanos e cristãos, e quando fazemos uma formação sabemos que temos de parar a certas horas, sabemos que no ramadão temos que ser mais tolerantes, porque eles estão menos compreensivos, com menos nutrientes no seu corpo para conseguirem trabalhar. E ao contrário também respeitam muito o Natal, a Páscoa. É muito bonito esse convívio e esse respeito mútuo. E mesmo o cumprimento inicial "Salaam Aleikum", o "Deus esteja convosco", que dizemos em árabe ou em francês, quem é o Deus de que estamos a falar? Não interessa, não é o mais importante dar um nome a este Deus.

Entendem-no como um Deus único?

De alguma maneira acho que sim. É muito bonito, e é um grande exemplo.

Continua a ser a fé em Deus e a vontade de se dar aos outros que a mantém por lá?

Sim. Eu tenho dito que este foi o melhor ano da minha vida, mas a verdade é que a meio do ano pensei em fazer as malas e vir-me embora. Senti-me triste, triste, e pensei “não aguento mais”. Há sempre muitos contratempos, muitos imprevistos, é tudo muito difícil. Percebi que precisava de voltar ao início, e pedi para fazer Exercícios Espirituais de Santo Inácio. E fiz, na capital. E ficou muito claro que Deus me dizia “ainda estou aqui contigo e esta é a tua missão, este ano e mais um ano”. Foi, sem dúvida, este voltar a Deus que me manteve lá, ainda mais animada e centrada do que no início. Agora quando regressar já sei o que é que me espera e já volto com outras competências, com outras ferramentas, outras estratégias.

Ser cristã lá é difícil?

É, porque não há missa, por falta de padre. Os padres combonianos fazem todo o oeste do Chade, mas são apenas três padres para paróquias gigantes. Em Gozbeida há uma comunidade cristã com cerca de duzentas pessoas, e temos um barracão onde fazemos as celebrações da Palavra ao domingo, que começam às 8h e duram duas horas. A primeira vez que tivemos um padre em Gozbeida foi em Abril, depois só voltou passado três meses. Mas não foi por não ter padre que aquela comunidade era menos activa, ou menos crente. A celebração da Palavra era em francês e muitas das mulheres só falavam o dialecto delas, e eu questionava-me “como é que elas estão aqui duas horas sem perceber nada, e estão, todos os Domingos?”. Foi fascinante ver a capacidade de fé daquela gente, e de crer mesmo sem perceber.

Que mensagem é que deixa aos jovens portugueses?

A mensagem continua a ser a mesma de quando eu estive na Sicília, mostrar que todos estes refugiados são pessoas como nós, pessoas muito interessantes, com histórias de vida, com aprendizagens, com sonhos. Mas sobretudo tento partilhar a experiência de essencial que eu tive durante este ano, de crescimento interior, de contacto com frustrações, de aprender a esperar, mostrar que se pode viver sem água, sem luz, sem ter supermercados gigantescos onde compramos tudo, e que se pode encontrar Deus em tudo isso.

Quando me sentia mais triste e mais em baixo ia para o campo de refugiados, e só ver as crianças a sorrir era o suficiente para me lembrar “é por estas crianças e por estes sorrisos que eu vim para o Chade”.

É um testemunho de fé o que transmite?

Sim, isso para mim é muito claro. É a fé que ainda me mantém com esta vontade e com esta alegria, porque sei que é Deus que me envia a lá estar. Não estou lá porque quero fazer uma carreira humanitária, ou porque quero salvar o mundo sozinha, é porque sei que é Deus que me chama a neste momento estar ali, e talvez para o ano a estar noutro sítio.

E como é que olha para o futuro? Que sonhos é que tem?

Tracei como meta para este ano aprender árabe de verdade, porque é uma grande barreira, tenho sempre de ter um tradutor e acho que se perde muita informação na tradução. Depois gostava muito de ir para uma zona de maior emergência. Eu estou no leste do Chade, que tem 12 campos de refugiados, mas é das zonas mais seguras no país, e a zona do Lago, que é a zona oeste, na fronteira com a Nigéria e com os Camarões, é a mais complicada, e muitas das organizações já se estão a mudar de novo para lá.

Não pretende voltar ao conforto de Portugal?

Eu costumo dizer, a brincar, que nos próximos 10 anos não me imagino a voltar a Portugal. Depois penso que isto significa ter 40 anos… Bom, se calhar é demais, mas sinto mesmo que descobri um sítio onde tenho tudo a render, e por isso não posso voltar para trás.

Vai continuar a dar notícias da sua missão através da página “trocar o certo pelo incerto”, no Facebook?

Sim. Ao início tentava pôr informação a cada semana, mas a vida lá é difícil ao nível de ritmos e de prazos. Mas, o feedback que fui recebendo, de amigos em Portugal e no estrangeiro, foi muito bom, houve muitas pessoas que se fizeram presentes, que iam dizendo “estamos a rezar por ti”, e isso fez-me sentir sempre acompanhada, foi muito importante.