​O cheiro a pobre
16-11-2018 - 06:55

Lamento, mas o cheiro do catolicismo não é o odor asséptico dos open space. Também não é o cheiro perfumado do luxo. Estamos mais perto da fé se estivermos à mercê do cheiro a cabelo seboso do velho que vive sozinho, por exemplo.

Há uns meses, aquando do pico mediático em redor de D. António Marto, retive uma ideia que ele repetiu diversas vezes: o cheiro a pobre; o padre ou bispo não pode esquecer os cheiros da pobreza. Perdemo-nos quando viramos a cara à miséria. Jesus, que nasceu no meio do estrume do curral, nunca deixou de mergulhar na carne que sofre a fome, o frio, a doença, o abandono, a falta de água para se lavar.

"Index"Esta é uma lição que procuro ensinar sistematicamente às minhas filhas: Jesus nasceu no local mais sujo e nauseabundo; nasceu perto dos seres humanos (pastores) mais desprezados. Sou duro e insistente neste ponto, porque temo que elas, como privilegiadas que são, acabem no erro que vejo um pouco por todo o lado: muitos católicos associam a sua identidade católica à ideia de "elite”, aos “escolhidos” (social e profissionalmente falando).

Lamento, mas o cheiro do catolicismo não é o odor asséptico dos open space. Também não é o cheiro perfumado do luxo. Estamos mais perto da fé se estivermos à mercê do cheiro a cabelo seboso do velho que vive sozinho, por exemplo. Se estão neste momento a franzir os olhos, só vos posso dizer uma coisa: releiam o vosso evangelho.

Não é preciso ser católico para compreender este esforço de humildade em relação ao pobre. Eric Blair, um famoso snobe inglês, contestou Deus a vida toda. Era, porém, um homem de boa vontade. Reconheceu no seu diário que não conseguia suportar o cheiro dos pobres, a pele encardida ou envolta por uma patine de suor que não é lavada, o cheiro a lume cruzado com a chuva, etc.

O pobre cheira mal, é verdade. Mas ele, Eric Blair, percebeu que este nojo snobe era imoral. Neste sentido, submeteu-se a um programa de reeducação moral: tinha de sentir na própria pele o cansaço e as condições de vida dos miseráveis. Esse programa de reeducação ficou conhecido por George Orwell, pseudónimo de Eric Blair e um dos grandes escritores do século XX.

Por exemplo, em “Na Penúria em Paris e em Londres”, Orwell conta como sentiu a fadiga animal gerada pelo trabalho braçal (cozinha de um hotel); o cansaço era tão grande que ele sentia o livre arbítrio a sair pelos poros. O juízo moral perde a espessura, torna-se quase rarefeito, quando a pessoa trabalha todos os dias até à exaustão.

Não invoco a tradição católica de D. António Marto e a tradição socialista de Orwell por acaso. Apesar das diferenças, ambas têm como tema fundamental algo que foi esquecido ao longo deste jovem século: a pobreza, que perdeu charme intelectual enquanto grande causa.

A pobreza é um tema materialista e toda a gente só queria discutir temas pós-materialistas. O mal-estar que todos nós sentimos no centro da nossa civilização, de Washington a Roma, nasceu deste equívoco.