​A liberdade de imprensa defende-se todos os dias porque é importante todos os dias
03-05-2018 - 08:27

Essa ‘servidão que se alimenta dos imprevistos da vida’ – como a descreveu Garcia Marquez – só existe e faz sentido com base num compromisso trabalhado em permanência por todos.

Tem quase tantos anos como eu um poema do O’Neill que diz, a dado passo: “Notícia é devoração! / Aí vai ela pela goela / que há-de engolir tudo e todos! / Aí vai ela, lá foi ela! / Nem trabalho de moela / retém notícia...”.

Num texto com quase 50 anos já lá está a voragem da velocidade, já lá está a pouca atenção que habitualmente damos à informação e já lá está – ainda que apenas como sugestão – a ideia de que todo este entorno sempre foi muito frágil.

Apesar do aviso do poeta, habituámo-nos – numa Europa com regimes tendencialmente democráticos nas últimas décadas – a tomar por adquirida uma estabilidade do sistema e dos seus mecanismos de controle. Habituámo-nos a presumir que os média, independentemente do nosso apoio, lá estariam sempre para ‘olhar por nós’ ou, pior ainda, tornámo-nos tão complacentes que os descartámos como supérfluos. Pois então, se tudo funciona mais ou menos bem e se, nos últimos 20 anos, tivemos acesso a cada vez mais plataformas de produção e disseminação de conteúdos, para que podemos querer ainda o que nos oferece uma atividade profissional tão exposta a pressões, tão marcada por falhas e por omissões?

Parte substancial do erro em que, nos dias de hoje, incorremos com frequência ao falar dos média tem a ver, precisamente, com esta falsa percepção de conforto. Ela exprime-se de formas muito diversas, às vezes com repulsa pelo Jornalismo, às vezes precisamente com o seu contrário – uma exigência suprema. Em linguagem de rede social, dir-se-ia que desenvolvemos um daqueles relacionamentos ‘it’s complicated’ – nuns dias os média não servem para nada e, noutros dias, não fazem o que deviam por obrigação.

Como em todas as relações complicadas, o território está longe de ser sadio e é nele que fermenta, por exemplo, o exuberante espanto com que quase todos enfrentámos notícias recentes sobre manipulação do sistema mediático em países na UE e fora dela ou sobre a existência de fluxos de conteúdos falsos nas redes digitais.

Ora, não há nada de novo no apetite da política pelo controle da informação e não há nada de novo na criação de mecanismos eficientes para fazer chegar mensagens a destinatários específicos (sejam elas verdadeiras ou falsas). Novo, no presente, é o facto de que parte desta produção de discurso já não se faz com a intermediação do jornalismo e novo também é o facto de que gigantescas empresas transnacionais assumiram um papel de relevo. Mas tudo isto aconteceu na frente dos nossos olhos e com a complacência de governos nacionais e supra-nacionais. Curiosamente, ou talvez não, alguns desses governos – alimentados pelo nosso ‘espanto’ – cavalgam agora cruzadas contra as ‘fake news’ que, para além de hipócritas, incorporam claramente sementes de uma vontade de controlar o discurso público, com implicações para a Liberdade de Expressão e para a Liberdade de Imprensa (na Malásia foi, há dias, condenada a primeira pessoa ao abrigo da ‘Lei Contra as Notícias Falsas’ – uma ferramenta que, entre outras coisas, permite ao governo declarar ‘falso’ tudo o que não tenha sido ‘confirmado pelas autoridades’).

Sendo certo que temos hoje todos mais formas de aceder a informação que consideramos relevante, que temos também mais meios para interagir diretamente uns com outros e que isso permite a aparição de mais vozes ditas marginais, não é menos certo que esse acesso continua a ser limitado para um número substancial de pessoas, que governos e grandes empresas dispõem de mais meios para influenciar, vigiar e controlar as suas audiências e que isso, em última análise, constitui uma ameaça séria ao funcionamento dos processos democráticos.

Longe de ser um adquirido estável, a liberdade de imprensa necessita, por isso, de ser garantida todos os dias, porque todos os dias algo novo a põe em risco. E, nesse compromisso, não podem envolver-se apenas os jornalistas ou uma mão cheia de fiéis leitores/ouvintes/telespectadores. Essa ‘servidão que se alimenta dos imprevistos da vida’ – como a descreveu Garcia Marquez – só existe e faz sentido com base num compromisso trabalhado em permanência por todos.

O tempo de fazer de conta que o futuro do Jornalismo não tem nada a ver connosco já passou. O tempo de fazer de conta que a Democracia plural e participada estará cá para sempre, com ou sem Jornalismo, já se esgotou também. Está na hora de despertar.