Centenas de trabalhadores das barragens do Tâmega expostos ao risco. “O perigo espreita a cada novo dia"
07-04-2020 - 11:30
 • Olímpia Mairos

Maioria dos trabalhadores são espanhóis e atravessam a fronteira durante a semana. Autarca de Ribeira de Pena recebe apelos desesperados de trablhadores e pede suspensão das obras. Iberdrola garante que que está a ser cumprido o plano de contingência.

À caixa de correio eletrónico do presidente da Câmara Municipal de Ribeira de Pena têm chegado autênticos gritos de desespero por parte de alguns trabalhadores da barragem de Daivões. A obra faz parte do Sistema Eletroprodutor do Tâmega, complexo formado por três barragens e três centrais hidroelétricas, a cargo Iberdrola. Em resposta à Renascença, a elétrica espanhola garante que está a ser cumprido o plano de contingência determinado e “está atenta, sensível e reativa a todos os eventos e desenvolvimentos relacionados com esta pandemia”.

A empresa acrescenta que “até ao momento atual não existe nenhum caso positivo de Covid-19” registado no empreendimento. No entanto, isso não retrai a preocupação de trablhadores, autarcas e populações, como registou a Renascença numa visita à barragem de Daivões, no concelho de Ribeira de Pena.

No empreendimento trabalham “cerca de 1.800 trabalhadores, a maioria espanhóis e de diferentes pontos do nosso país”, sendo que “à volta de 370 pessoas são de Ribeira de Pena e de municípios limítrofes”. Os trabalhadores temem pela sua própria saúde e pela dos seus familiares e, tal como a autarquia, reclamam a paragem imediata das obras, como forma de prevenir a propagação da Covid-19.

“Estas barragens têm ‘timings’, é verdade, e é uma obra importantíssima para o país, é umas das maiores obras neste momento, a nível europeu. Mas a verdade é que trabalham aqui centenas e centenas de trabalhadores, não conhecemos as proveniência dos mesmos, mas sabemos que a grande maioria deles são espanhóis e de zonas onde se abateu a tragédia e nós não queremos importar essa tragédia para Ribeira de Pena e consequentemente para Portugal”, afirma o presidente da autarquia.

No empreendimento trabalham “cerca de 1.800 trabalhadores, a maioria espanhóis e de diferentes pontos do nosso país”, sendo que “à volta de 370 pessoas são de Ribeira de Pena e de municípios limítrofes”.

Para evitar que tal aconteça, João Noronha só vê uma solução e essa passaria por parar as obras. Nesse sentido já apelou à Iberdrola, empresa responsável pelo projeto, à Autoridade para as Condições do Trabalho, ao Governo e ao Presidente da República. Até ao momento não viu o seu pedido atendido, apenas Marcelo Rebelo de Sousa fez eco à missiva. E a preocupação agudiza-se.

O setor da construção continua em atividade, em estado de emergência, mas há uma preocupação crescente por parte do Sindicato da Construção de Portugal com as condições oferecidas aos trabalhadores. Em entrevista à Renascença, lamentou que "não haja testes aos trabalhadores, quer em obras públicas, de grande dimensão, quer em obras privadas. Concretamente em relação ao Sistema Eletroprodutor do Tâmega, Albano Ribeiro sublinhou que “há trabalhadores espanhóis que vão e regressam todos os dias a casa, em Espanha". "Alguns vão ao fim de semana e regressam e não houve qualquer análise realizada”, denuncia.

“O perigo espreita a cada novo dia que surge isto, porque continua a verificar-se todos os fins de semana um grande movimento de trabalhadores. Saem daqui centenas de pessoas que vão à sexta-feira e regressam domingo à noite ou segunda de manhã. E, portanto, a preocupação da população é generalizada”, alerta o autarca de Ribeira de Pena.

João Noronha revela que lhe têm chegado pedidos desesperados “de vários trabalhadores, também estrangeiros,” a pedir a sua ajuda, no sentido de pressionar a Iberdrola a suspender as obras.

“Escrevem sob anonimato, dizendo que não podem falar com medo de represálias”, conta o autarca, adiantando que muitos lhe dizem que “não podem falar”.

“Se dizemos qualquer coisa, mandam-nos ficar em casa. Precisamos do nosso sustento para as nossas famílias, mas vivemos em terror constante, porque estamos aqui e depois vamos para as nossas famílias e não sabemos se as estamos a contaminar”, preocupações de trabalhadores relatadas pelo presidente da autarquia.

“Não existem condições de segurança que previnam a transmissão do vírus”

Numa das mensagens a que a Renascença teve acesso, o trabalhador de um subempreiteiro conta que se apresenta “diariamente ao serviço, aterrorizado”, sem saber se já contraiu o vírus e se já contaminou a família.

“Estamos a falar de um conjunto de obras em que a larga maioria dos trabalhadores são de nacionalidade espanhola. Como sabe, estes encontram-se a passar a fronteira entre os dois países todas as semanas, sem efetuarem nenhum despiste de sintomas. Isto representa um elevado risco de importação do vírus”, lê-se no email enviado ao presidente da Câmara.

O trabalhador fala nos colegas que prestam serviço nas “obras das barragens, mas também nas ETAR´s, pois os estaleiros são partilhados” e denuncia a falta de medidas de segurança.

De acordo com este trabalhador, “algumas empresas envolvidas já elaboraram e publicaram planos de contingência e de proteção, mas estes planos ficaram no papel e não chegaram ao terreno”.

“Nas obras em questão não existem condições de segurança que previnam a transmissão do vírus. Dada a natureza das funções, não é possível cumprir com as distâncias de segurança e em muitas frentes da obra, ainda não chegaram indicações, nem elementos de proteção como máscaras e desinfetantes para as mãos, nem os locais se encontram a ser desinfetados”, denuncia.

No email dirigido ao presidente da Câmara de Ribeira de Pena é dito, por exemplo, que “há uma empresa que ofereceu uma máscara a cada trabalhador, indicando que seria para toda a semana de trabalho”.

“Eu tenho feito as minhas refeições no meu automóvel”

Mas há mais. Segundo este trabalhador, “devido ao encerramento dos restaurantes os trabalhadores recebem as suas refeições em ‘take-away’ e são obrigados a consumir em refeitórios/contentores com dezenas ou até centenas de outros trabalhadores”.

“Eu tenho feito as minhas refeições no meu automóvel”, escreve na mensagem dirigida ao autarca.

São relatos como este que impelem o presidente de Ribeira de Pena a agir e a insistir com as “entidades competentes” a decidirem o “quanto antes parar as obras”.

“Apesar dos constrangimentos, ou transtornos à própria Iberdrola em termos de ‘timings’, é importante tomar medidas, porque antes dos ‘timings’, antes das questões financeiras, temos que ter a preocupação que a saúde de todos é o mais importante neste momento”, considera o autarca.

O presidente da autarquia fala de um concelho “envelhecido” e alerta para a possibilidade de “ser a entrada de um foco que não tem fronteiras, porque, como estamos todos fartos de saber, não há fronteiras territoriais para esta pandemia”.

“Pode ser aqui, em Ribeira de Pena, a origem de algo muito maior para o nosso país”, acrescenta, sustentando o seu receio “na falta de condições, por exemplo, dos contentores, onde os trabalhadores se congregam aos magotes”.

O Sistema Eletroprodutor do Tâmega é um dos maiores projetos hidroelétricos na Europa, nos últimos 25 anos. Este complexo é formado por três barragens e três centrais hidroelétricas. Duas das barragens estarão situadas no rio Tâmega (Daivões e Alto Tâmega) e a terceira no rio Torno (Gouvães).

Com um investimento superior a 1.500 milhões de euros, o complexo do Tâmega começou a ser construído em 2014 prevendo-se a sua conclusão para 2023.

No empreendimento da Iberdrola estão empenhados vários empreiteiros e subempreiteiros.

“É uma miséria de vida ter de arriscar para dar de comer aos filhos”

Apesar das medidas de isolamento social e das restrições impostas à circulação, a Renascença verificou no terreno que as obras nas barragens prosseguem. Vários camiões e máquinas continuam a operar e a movimentar-se nas estradas e caminhos de acesso aos empreendimentos, enquanto que nas obras propriamente ditas permanecem vários trabalhadores. Presenciámos também, pela hora de almoço, a presença de vários trabalhadores à porta de restaurantes, onde aguardavam pela entrega da refeição e até foi possível ver dois trabalhadores a fazerem a refeição debaixo de uma viga de grandes dimensões, carregada num camião.

É toda esta movimentação que preocupa Maria do Céu, habitante de Ribeira de Pena.

“Eles precisam de comer, precisam de vir às compras, eles tocam em coisas e nós depois vamos por trás e também tocamos”, afirma, acrescentando que “há por aí muitos espanhóis e brasileiros sem qualquer controlo”. Esta habitante local não entende “porque é que a Iberdrola não para, quando todo o país foi obrigado a parar”, temendo que “a falta de controlo” possa prejudicar a saúde dos locais.

Também Domingos Fernandes se manifesta “apreensivo” com a continuidade das obras nas barragens do Alto Tâmega. “Isto é um barril de pólvora. Os espanhóis vêm para aqui com o país deles arder e podem vir incendiar o nosso”, atira o habitante, preocupado com a sua saúde e a dos seus.

Domingos diz não compreender a “falta a inércia dos responsáveis políticos que estão à espera que isto dê o berro para tomarem medidas”, isto porque, “se em Espanha há muitos casos da infeção, é normal que ao virem para cá possam transportar novos casos”.

Pelo mesmo diapasão afina Cristina Ribeiro, temendo que “estando Espanha pior do que nós, eles, ao irem lá passar o fim de semana, podem trazer o vírus sem saber e contagiarem alguém”. “Não é nada contra os espanhóis, porque eles também estão preocupados, mas coitados, são obrigados a trabalhar para ganhar o pão”, diz Ricardo Silva.

Para este habitante de Ribeira de Pena, que tem um filho nas obras, “a melhor solução para todos seria parar os trabalhos até que o vírus abrandasse”. “O meu filho anda angustiado. Chega a casa e refugia-se no quarto, porque tem medo de estar contaminado e contaminar os filhos”, relata à Renascença, salientando que “só não se vem embora porque precisa do emprego”.

“É uma miséria de vida ter que arriscar para dar de comer aos filhos e correr o risco de apanhar a doença e passar para a família”, conclui.

Iberdrola garante que está a ser cumprido plano de contingência nas barragens do Tâmega

A Renascença confrontou a Iberdrola com a reivindicação da autarquia e da própria população de Ribeira de Pena em suspender as obras, justificando a medida com a presença de um elevado número de trabalhadores estrangeiros, nomeadamente espanhóis, que trabalham na obra e ao fim de semana vão a casa.

A eléctrica dá conta de que “está atenta, sensível e reativa a todos os eventos e desenvolvimentos relacionados com esta pandemia” e, nesse sentido, garante, “tem atuado no estrito cumprimento de todas as orientações emanadas pelas Entidades Públicas competentes, na sequência e em concretização da declaração do estado de emergência Nacional determinada a coberto do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março”.

A Iberdrola recorda ainda que a declaração do estado de emergência refere “que os operadores e demais intervenientes económicos deverão prosseguir, respeitando as contingências e restrições que são publicamente conhecidas, com o desenvolvimento da atividade económica dentro da possível normalidade, sempre que estejam garantidos o cumprimento e a concretização das medidas de prevenção de segurança e saúde, determinadas pelas Autoridades de Saúde competentes”.

A empresa espanhola garante que o seu plano de contingência, para fazer face à pandemia no âmbito das obras do Sistema Electroprodutor do Tâmega (SET), está em linha com as diretrizes da DGS, da Organização Mundial de Saúde e do Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças.

“Cada uma das empresas contratadas para executar a obra preparou, simultaneamente, um plano de contingência semelhante. Existe uma coordenação diária entre a Iberdrola e as ditas entidades executantes, a fim de se garantirem as condições de segurança dos colaboradores”, afirma a elétrica espanhola em resposta à Renascença, acrescentando que “até ao momento atual não existe nenhum caso positivo de Covid-19” registado no empreendimento.

"Projeto de interesse nacional"

De acordo com a Iberdrola, “este é um projeto de interesse nacional, mas que também cumpre, atualmente, um importante desígnio no funcionamento da economia local”.

“Estamos conscientes dos riscos atuais, mas também sabemos que estamos à altura das nossas responsabilidades e, neste momento, acreditamos que todas as ações devem ser pautadas pela necessária ponderação, reflexão e equilíbrio”, sustenta.

A empresa garante que recomendou ainda a “todos os trabalhadores dos núcleos populacionais onde se encontram, que limitem o contacto social dentro e fora da zona de trabalho”, proibiu “visitas ou reuniões presenciais com entidades externas e reduziu ao mínimo imprescindível a presença de pessoal nas reuniões internas”.

De acordo com a elétrica espanhola, foi ainda reduzida “a concentração de trabalhadores nas frentes de trabalho, nas deslocações dentro das obras e nas áreas comuns” e não apenas nos refeitórios.

Foram estabelecidas “rotinas de desinfeção em áreas comuns” e aumentado “os pontos de lavagem e desinfeção das mãos”.

A Iberdrola afirma-se empenhada em “incentivar, como sempre aconteceu até agora, ao estrito cumprimento de todas as medidas de segurança e ao uso de equipamentos de proteção individual e coletivos por parte de todos os trabalhadores que coabitam na obra” e garante que vai “cumprir todas as ordens que sejam recebidas das Autoridades Públicas competentes em razão da matéria”, não revelando o número de trabalhadores atualmente nas obras.

O Sistema Eletroprodutor do Tâmega é um dos maiores projetos hidroelétricos levados a cabo na Europa nos últimos 25 anos. O complexo é formado por três barragens e três centrais hidroelétricas. Duas das barragens estarão situadas no rio Tâmega (Daivões e Alto Tâmega) e a terceira no rio Torno (Gouvães). O investimento total da obra é de 1.500 milhões de euros.

[Notícia atualizada às 12h45, com a resposta da Iberdrola à Renascença]