A vida que vem de Vénus
25-09-2020 - 06:55

Se há vida num planeta que é a nossa representação do inferno, Vénus, então isto quer dizer que as probabilidades de encontrarmos formas de vida fora da Terra aumentam exponencialmente. E isto enche-me de esperança. A Criação supera a nossa capacidade de compreensão; Ela está sempre três ou quatro passos à nossa frente, isto é, temos sempre aventuras literárias e científicas à nossa espera.

É estranho não falarmos mais da descoberta da possibilidade de vida em Vénus. Estamos tão enterrados na paranóia que nem sequer temos tempo ou disposição para ficarmos maravilhados: vida em Marte; o planeta que parece ser o inferno de Dante pode ter vida; o espelho gasoso e amarelado da azulão aquático da Terra pode, afinal, comportar formas de vida. E, se há ali vida, isto quer dizer que é uma vida exatamente oposta à nossa; é uma vida que respira uma substância (fosfina) que é veneno para nós, e vice-versa. Como diz a cientista portuguesa que está no centro da descoberta, Clara Sousa-Silva, a fosfina mata toda a vida que gosta de oxigénio. Ou seja, a vida não tem de ser igual à nossa vida aqui na terra. Isto representa uma possível ruptura científica, claro, mas também teológica.

Estancar a imaginação neste ponto é agora impossível. É impossível não pensar numa saga de ficção-científica, um choque futurístico entre os terráqueos do oxigénio e os venusianos da fosfina, dois inimigos com um grau de animosidade tão profundo como a própria biologia, o ar de um grupo é o veneno do outro. O conflito schmittiano é inevitável? Ou aprendemos a viver uns com os outros através de uma troca? Não é a nossa relação com o mundo vegetal na Terra uma troca? As árvores oferecem-nos oxigénio, nós oferecemos-lhes dióxido de carbono. E, chegado aqui, é impossível conter a imaginação no sentido inverso, no sentido de um passado mágico à Senhor dos Anéis ou à conto tradicional chinês, um passado mítico marcado por uma guerra entre Homens e Ents (árvores). Guerra, essa, que termina com armistício que impõe o acordo que respiramos ainda hoje (dar CO2, receber O2). Acho que vou contar esta fábula às minhas filhas ainda hoje.

A ciência, parece-me, tem procurado vida em planetas parecidos ao nosso. O que está aqui em causa, portanto, é algo revolucionário e que foi intuído por Frank Herbert no clássico de ficção-científica, “Dune”, que terá nova adaptação cinematográfica em breve: a vida poderá crescer em cenários inconcebíveis para nós. E, se pensarmos de novo naquilo que nos rodeia aqui na terra, esta hipótese não é assim tão absurda. Os cientistas sabem que, a centenas ou mesmo dezenas de metros de profundidade, estão enterradas algumas formas de vida microscópicas, formas de vida "congeladas" no tempo à espera de um cataclismo que as desperte. Num livro absolutamente maravilhoso sobre baleias e Melville, “Leviatã, Em Busca dos Gigantes do Mar” (Cavalo de Ferro), Philip Hoare revela que a ciência não consegue clarificar alguns mistérios do fundo do mar. Este livro, de resto, oscila entre o desencantamento do mundo da era moderna e um reencantamento do mundo. Pelo menos, é o que eu sinto. Sinto essa tensão neste livro e em todos os momentos em que a ciência avança: sim, a ciência desentanca de um lado, mas volta a encantar do outro lado: vida em Marte? Planetas tão quentes onde os metais evaporam como água? Bactérias do tempo dos dinossauros a umas centenas de metros de profundidade?

Se há vida num planeta que é a nossa representação do inferno, Vénus, então isto quer dizer que as probabilidades de encontrarmos formas de vida fora da Terra aumentam exponencialmente. E isto enche-me de esperança. A Criação supera a nossa capacidade de compreensão; Ela está sempre três ou quatro passos à nossa frente, isto é, temos sempre aventuras literárias e científicas à nossa espera. A nossa descoberta da Criação está só no início.