Brasília: a política como guerra
11-01-2023 - 05:45

O que se passou em Brasília, como antes em Washington, como, no futuro, numa outra capital qualquer, é a triste consequência de um mal-estar político que corrói a solidez da cultura democrática.

A violência perpetrada pelos manifestantes “bolsonaristas” na cidade capital da maior democracia da América do Sul, no passado domingo, copiou de perto a coreografia do assalto ao Capitólio, nos EUA, há dois anos, pelos “trumpistas”. Em Washington, como em Brasília, as multidões assaltaram as sedes do poder, destruindo muita coisa à sua passagem, em manifestações de intimidação caótica. A narrativa dos protestos americanos, em 2021, era a de que a eleição de Trump fora “roubada” por fraude; a narrativa dos adeptos de Bolsonaro é ainda pior: a eleição de Lula da Silva também foi fraudulenta e o novo presidente é o velho “ladrão” do PT.

As imagens de Brasília, no domingo, foram impressionantes: a bela praça dos Três Poderes, desenhada por Óscar Niemeyer para colocar em diálogo arquitetónico os poderes legislativo, executivo e judicial de qualquer democracia, caída nas mãos de uma turbamulta promotora da desordem e do radicalismo contestatário, ironicamente embrulhada na bandeira do Brasil, cuja divisa, de “Ordem e Progresso”, a deveria desautorizar. A tentativa de golpe de Estado - ou, pelo menos, de coação desordeira sobre poderes instituídos - já viria, parece, de antes do Natal, e acelerou depois da tomada de posse de Lula da Silva, nas redes sociais. Houve instigadores, financiadores, operacionais e cabecilhas, e agora começará o apuramento de responsabilidades, que toda a gente, a começar por Lula da Silva, aponta a Jair Bolsonaro, mesmo que este, “foragido” nos EUA, já tenha vindo repudiá-las.

O que se passou em Brasília, como antes em Washington, como, no futuro, numa outra capital qualquer, é a triste consequência de um mal-estar político que corrói a solidez da cultura democrática. É óbvio que Jair Bolsonaro é o responsável (i)moral do crime perpetrado, pelo ambiente truculento, acusador e “mau caráter” com que exerceu o seu mandato e com que (não) aceitou a derrota nas eleições. Mas Lula da Silva, lesto em apontar-lhe o dedo, também tem muito que refletir. A campanha para a sua reeleição pode ter tido uma componente de projeto de regeneração do Brasil; mas teve, e demais, um estilo justicialista, acusatório, vingador em relação a Bolsonaro e aos “bolsonaristas”. A eleição de outubro partiu o país ao meio. Lula ganhou com pouco mais de 1% de votos. E, na tomada de posse, em vez de falar para os milhões que votaram no seu oponente, desprezou-os, perdendo uma bela oportunidade para se firmar como um apaziguador para o futuro, e não como um presidente de fação, que ainda fala como candidato, e que parece querer governar apenas para meio Brasil – como, simetricamente, fez Bolsonaro durante os seus quatro anos, num mandato de guetização clara da esquerda e de tudo o que cheirasse a “petralhas”.

Em Brasília, o que saiu à rua foi o novo modo da “política dos inimigos”, como recentemente Michael Ignatieff (o biógrafo de Isaiah Berlin) batizou os nossos tempos. Os populistas, como Bolsonaro e Lula são, padecem, todos, do radicalismo centrífugo que queima pontes, destrói consensos, anula diálogos, malsina convenções e despreza regras e símbolos, minando, afinal, tudo o que faz a beleza e a operacionalidade da vida em democracia. Por isso, quando perdem, eles, que se dizem os únicos intérpretes da verdadeira vontade popular, declaram logo que houve fraude e atiçam o “seu” povo contra o sistema; e quando ganham, achando-se incensados pelo “seu” povo, tratam quem não votou neles como “deploráveis” e contra eles querem governar. Na guerra entre povos de uma política como guerra, como exclusão, como insulto, perde a democracia - e só esta é o governo do povo como um todo – e perdemos todos nós.