"Nenhum chanceler alemão pode sobreviver politicamente à perda da Ucrânia"
19-03-2022 - 15:55
 • José Pedro Frazão

Numa análise à guerra da Ucrânia no quadro das relações de Kiev e Moscovo com a União Europeia, os investigadores Carlos Gaspar e Sandra Fernandes admitem mudanças na geopolítica europeia e sublinham o peso das sanções que se abatem sobre a Rússia. A interpretação dos desenvolvimentos diplomáticos permite ainda olhar para o papel da China na relação com a Rússia e para os objectivos negociais de ucranianos e russos ao longo da guerra.

No dia 23 de Fevereiro, véspera do início da operação militar russa na Ucrânia, existia uma Europa que ainda incluía a Rússia. Hoje isso já não acontece, sublinham os analistas Carlos Gaspar e Sandra Fernandes, concordando que esta guerra mudou a relação entre a União Europeia e a Rússia.

"Concluímos que a relação da Rússia com a Europa e com o Ocidente falhou no pós-guerra fria. É preciso redesenhar essa relação e isso mudará a geopolítica europeia. Ainda não temos a capacidade de perceber que redesenho vai ser esse. Mas a Europa de 23 de Fevereiro já não é a Europa de hoje", afirma Sandra Fernandes, investigadora da Universidade do Minho, no recente debate no programa "Da Capa à Contracapa" da Renascença.

Carlos Gaspar assinala o braço forte das sanções contra a Rússia e um impacto decisivo na capacidade económica de Moscovo, dando como exemplo as sanções contra o banco central russo "extremamente fortes e inéditas" e que significam "a falencia a curto prazo da Rússia". Num plano mais particular, o investigador do Instituto Português de Relações Internacionais deixa entender que a posição específica da Alemanha nesta guerra terá sempre repercussões importantes em Berlim.

"A União Europeia não é neste momento muito importante. Mas não há nenhum chanceler alemão que possa sobreviver politicamente se tiver perdido a Ucrânia", afirma Gaspar. Já para Sandra Fernandes, estão em curso alterações significativas nas políticas europeias de defesa e de energia "que vão demorar algum tempo a fazer efeito".

No caso específico da área militar, a especialista em relações internacionais da Universidade do Minho sublinha que a União Europeia está a tentar ser um actor mais credivel com o objectivo de uma "soberania estrategica" sugerida na Presidência francesa da União Europeia. A defesa continental assenta muito no papel da NATO e a Aliança Atlântica "está mais unida e forte do que jamais esteve no passado, ao contrário do que queria o presidente Putin", complementa Carlos Gaspar que aconselha "cabela fria " na NATO face a eventuais escaladas do conflito para a dimensão nuclear.

A mesa das negociações

Carlos Gaspar enfatiza que as guerras têm uma solução militar. "Sei que esta é uma interepretação impopular mas é efectivamente no terreno das armas que a guerra se vai decidir nas proximas semanas", alertando para a necessidade de observar com atenção as movimentações militares enquanto decorrerm desenvolvimentos diplomáticos e reuniões bilaterais de negociação.

O investigador do IPRI assinala que Kiev "não quer cometer qualquer acto que possa pôr em causa a integridade do território ucraniano como ele ficou definido em 1991". Um dos ganhos da guerra para a Ucrânia foi o reconhecimento da existência de uma "nação ucraniana".

"Passaram a prova da guerra. E a guerra é a prova final da existência de uma comunidade nacional. Os ucranianos querrm ser independentes, mesmo sem saber as fronteiras finais do conflito", argumenta Carlos Gaspar que salienta, por outro lado, que os objectivos da Russia nesta guerra são variáveis à medida que o conflito progride.

"À partida, a Russia quer alterar a arquitectura de segurança europeia. Quer 'finlandizar' a Europa Central e Oriental e integrar de alguma manira a Ucrânia na sua esfera de influência, o que exige a mudança de regime em Kiev", analisa o professor de relações internacionais. Era preciso entrar na Ucrânia ? "Na ausência de um pouco mais de imaginação política, a Russia recorreu aos métodos mais antigos e bárbaros como esta guerra".

Já para Sandra Fernandes , a tomada de Kiev será determinante para que a Russia "comece a fazer avançar de forma mais clara os seus peões politicos". No entanto a investigadora da Universidade do Minho considera que Putin age de forma cada vez mais imprevisível devido ao que classifica de uma "falta de vitória" militar até ao momento.


O que fará a China?

Desde o final da segunda guerra mundial que a Europa não assistia a uma guerra entre dois estados. Carlos Gaspar alerta que Vladimir Putin pode ganhar a guerra no terreno das armas e acabar por perdê-la politica e diplomaticamente.

"Mesmo que a Rússia ocupe grande parte da Ucrânia, não será nada fácil controlar um território com a extensão de 1 terço de França. O resultado desta invasão territorial não impede a Rússia de passar a ser um 'estado pária' fora da comunidade internacional e cada vez mais dependente da China. A China não vai fazer nada que possa prejudicar a Rússia. Ao mesmo tempo, os analistas chineses prevêem que esta guerra vai correr mal. E a China não quer estar do lado errado quando as coisas terminarem. Não é brilhante do ponto de vista da solidariedade política, mas essa não é a regra nas relações internacionais, mesmo entre quase aliados", argumenta Carlos Gaspar.