Pedro Abrunhosa: “É preciso ter cuidado com esta crise. Pobreza e medo fomentam ideologias de destruição”
22-05-2020 - 08:30
 • Maria João Costa

“Tempestade” é a nova canção escrita por Pedro Abrunhosa nos dias de confinamento. O músico está a trabalhar num novo disco. Gosta do silêncio para compor, mas sente falta do público. No sábado, regressa aos concertos ao vivo.

Dedica ao seu pai de 96 anos, hospitalizado durante a pandemia, a sua nova música. Pedro Abrunhosa escreveu “Tempestade”, nos dias de confinamento. Compor é “uma forma de salvação”, confidencia em entrevista à Renascença.

O músico, que esteve muito ativo nas redes sociais durante o estado de emergência, sente falta das palmas. No sábado, regressa ao palco, em Ansião, para um concerto ao vivo.

Sobre o novo coronavírus, afasta a ideia de que estamos numa guerra. A pandemia é, nas suas palavras, uma “lâmina” perante a qual “somos pequenos e iguais”.

Abrunhosa quer ter uma perspetiva esperançosa, mas teme que a pobreza e o medo possam ser terreno fértil para as “ideologias de destruição”. Recorre às palavras do Papa Francisco para dizer que precisamos de “tempo para a contemplação”.

Foi muito ativo nas redes sociais, dando concertos, nestes dias de confinamento. Foram também, para si, momentos de criação artística?

Qualquer forma que o autor tem de mostrar aquilo que faz é uma forma de salvação. Não existe arte sem que ela cumpra um objetivo e que seja uma ponte emocional para com quem nos está a ouvir. É sempre uma incógnita, porque o autor faz para um abstrato.

Neste caso concreto foi curioso porque, apesar do confinamento, e apesar da conexão digital das redes socais, há uma presença. Sabe-se que as pessoas estão ali, os números aparecem no canto superior do ecrã. Sabemos que entraram mais 100 e saíram mais 50. É curioso que isso cumpre o autor. Acho que é a diferença em relação ao entretenimento, a obra de arte cumpre-se na voz dos outros.

Sentiu falta da proximidade do público, do palco e das palmas nos diretos que fez? É uma experiência diferente?

Há aqui uma diferença muito grande que é o som. Eu fiz muitos diretos durante o confinamento, é verdade, e funcionaram todos muito bem, mas no final das músicas, apesar das presenças que ali estão, há o silêncio. Portanto, nunca há o afeto do “bruaá” da emoção do público, mas cria uma aparente proximidade. As pessoas podem-nos pedir uma música diretamente, não importunam o concerto se pedirem o "Tudo o Que Eu Te Dou" ou "Para os Braços da Minha Mãe". É uma ligação interessante.

“Tempestade”, a canção que escreveu durante este tempo, é o espelho do momento que atravessamos?

A “Tempestade” é uma metáfora que acho que se adapta mais a este vírus. Isto não é uma guerra. Acho que a metáfora da guerra é exagerada e pode até ter efeitos nocivos num certo enfrentar psicológico coletivo. Não é uma guerra!

Qual é para si a diferença?

A guerra é uma violência gratuita que se pode evitar, não cultivando o ódio. É, portanto, o último estado. Pior do que uma pandemia é a guerra. Nós vemos neste momento a desgraça e a calamidade que é com os refugiados sírios. Portanto, a pandemia sabemos que afeta todos, mas também é uma questão de ação individual, em casa, no dia-a-dia, que pode combatê-la.

E a “Tempestade”?

A “Tempestade” remeteu-nos para o silêncio. O silêncio é o sítio onde nós músicos criamos. Para mim, o silêncio não é um lugar estranho. Para mim, o silêncio é sobretudo um lugar de reflexão. Recordo as palavras do Papa Francisco que várias vezes falou sobre esta matéria do tempo para a contemplação, para que o tempo ressoe dentro de nós. Nós não permitimos que o tempo ressoe.

Esta expressão é lindíssima porque, de facto, se há coisa que o tempo faz é que não se ouve, é silencioso. Mas se nós, por breves instantes, como aconteceu nestes dois meses, deixarmos o tempo escoar ele vai ressoar. Este escutar o tempo, os outros, o confinamento para a literatura, para a música dá um espaço de aconchego interior que foi várias vezes invocado pelo Papa, durante este período duríssimo.

Contou com o Diogo Piçarra e a Carolina Deslandes nesta nova canção, são dois novos cúmplices?

Com o Diogo a minha relação é mais antiga, eu fazia parte do júri do programa “Ídolos” quando o Diogo por lá passou. Tive o prazer e o privilégio de assistir ao surgimento do Diogo e tenho uma grande admiração por ele. Esta nova geração vê as coisas de outra maneira, não é melhor nem pior, é de outra forma. Isso é inevitável. É a isso que se chama dialética, é a evolução.

A Carolina Deslandes é uma amiga pessoal, uma pessoa com quem aprendi muita coisa, e que aprendi a admirar. É uma mulher de uma capacidade de luta e trabalho invejável. De repente há aqui uma junção de gerações e de influências, um bocadinho como se faz na arquitetura, em que os arquitetos misturam sangue novo nos projetistas e desenhadores. Há aqui uma osmose geracional muito interessante. E é verdade que é também, como diz, encontrar novos cúmplices.

Poderão vir daí novos trabalhos?

Eu estou neste momento no estúdio, estou naturalmente a escrever porque é o que faz um escritor de canções e, claramente, esta pandemia indicou-me que o caminho era por aqui, com estes jovens músicos e produtores e é por aí que estou a explorar os próximos caminhos.

Está a trabalhar num novo disco?

A escrita não para, está permanentemente a verter, como uma nascente, às vezes com maior intensidade ou qualidade, outras vezes com rapidez e fluidez. É uma necessidade sem a qual não existe o usufruto do palco. Para lhe responder diretamente, sim, estou a trabalhar em músicas, das músicas todas, algumas provavelmente integrarão um disco.

Como é que acha que vamos sair desta situação de pandemia, mais solidários, com novos hábitos?

Aumentou a sensibilidade das pessoas para as questões sociais e, portanto, estão a doar mais. Há uma solidariedade implícita, porque isto foi como uma lâmina que por aqui passou e ceifou muita coisa, nomeadamente vidas. Somos pequenos perante esta lâmina e somos iguais. Isto despertou um certo instinto de solidariedade.

Sinto que vai dizer há um “mas” nisto tudo?

A questão é que na maior parte das vezes, para não dizer sempre, a História tem-nos ensinado que, a seguir a uma grande crise que gera grande descontentamento, há sempre, como já há, bolsas de pobreza, fome e pessoas em dificuldades imensas. São mais propensas e sensíveis a certos discursos que são menos racionais, e são mais emocionais. É, portanto, um terreno fértil para a propagação das não ideias, do conceito destrutivo. Nota-se agressividade nas redes sociais.

A História já nos deu exemplos disso.

Se tomarmos como exemplo aquilo que aconteceu a seguir à pandemia da chamada gripe espanhola, após a I Guerra Mundial, a Humanidade passou por uma guerra, foi tremendo, morreram milhões de pessoas, e a seguir veio a pandemia e morreram mais 50 milhões de pessoas.

Poderíamos dizer: “A Humanidade vai abrir os olhos e saber enfrentar isto e ser mais amigável”, pois, na realidade a seguir veio um certo individuo austríaco e aconteceu a II Guerra Mundial, ainda com mais milhões de mortos. Quer dizer que o descontentamento grassou ali entre as duas guerras e houve quem o soubesse cavalgar.

Há novos riscos hoje?

É preciso ter cuidado com esta crise, porque a pobreza e o medo fomentam e instigam. Quero estar esperançoso por ver estes atos de solidariedade porta-a-porta, vizinho a vizinho, mas no grande amplexo da política internacional não estou tão otimista, porque vejo a convicção dessas ideologias da não construção, da destruição, dos que não propõe nada, só destroem e acusam o outro, portanto vamos com calma defender aquilo que conseguimos construir até agora.

Vai voltar aos palcos já este sábado, dia 23, em Ansião, às 22h00. Será um concerto em modo “drive-in”.

A expressão “drive-in” é uma expressão inglesa e eu tentei chamar-lhe "vens de carrinho" o que é uma ironia. As pessoas vão de carro e assistem. Penso que será o primeiro “drive-in” musical em Portugal. Não sei o que vai acontecer. Cada carro leva cinco pessoas, não se pode quebrar a lotação. As pessoas recebem a emissão no rádio. Há uma frequência facultada às pessoas e, portanto, ouvem com a qualidade da sua aparelhagem no carro.

Em frente aos vidros estará o palco, onde estarei em versão reduzida por causa das questões legais de segurança e afastamento social, mas também porque é um palco pequeno. Não cabem os Comité Caviar todos. Mas vai ser um espetáculo na tradição dos espetáculos que faço com formação reduzida, com a energia e a força do costume.