Pai
26-06-2020 - 06:00

Uma coisa é a ética em abstrato; outra coisa, bem diferente, é a ética na prática. Ser decente não é impossível, é só extremamente doloroso.

Pai, sinto-me como um daqueles galeões que aporta semi-destruído após a tempestade. Física e mentalmente, chego de rastos ao final desta quarentena acompanhada de escola à distância em que fui pai, professor, empregada e, por vezes, escritor e cronista. Foram meses de teste e absoluta anulação de mim mesmo. Sei que é um dos caminhos da salvação: sem a anulação do nosso “eu”, como é que podemos servir os outros, a começar na nossa mulher e nos nossos filhos? Mas uma coisa é a ética em abstrato; outra coisa, bem diferente, é a ética na prática. Ser decente não é impossível, é só extremamente doloroso para o ego. E o meu, como sabes, é enorme.

O caminho que colocaste à minha frente é difícil, quase impossível, porque o meu ego é tão grande como meu sentido de missão pela família. Sinto-me esmagado entre estas duas forças, duas placas tecnónicas antagónicas. Sinto-me preso entre a parábola dos talentos, que puxa pelo ego, e o valor supremo da família, que anula o ego. Em muitos dias desta quarentena, este choque geológico destruiu-me por completo. Nalguns dias, senti os dois fantasmas ao mesmo tempo. Por um lado, o medo de não conseguir acabar este livro; o medo de chegar perto dos 50 com sensação de que não vou ter tempo para escrever os livros que quero escrever. Por outro lado, o pânico de não ser um bom pai, de não estar à altura do inerente sacrifício que é criar uma família, o medo de perder a alegria imensa que sinto com o meu papel de stay-at-home-dad.

Como é que saía desse choque? Através da esperança. A esperança não deve ser confundida com o pensamento positivo. A esperança atravessa o medo, não o evita. A esperança não é um afeto ou sentimento, é um treino mental que disciplina a mente para ver o lado positivo de qualquer cenário - um desafio pantagruélico para este que te escreve. Eu seria o primeiro a dar um balázio pessimista no optimismo de Caleb.

Não escrevo uma linha do meu livro há quatro meses? Pois não. Mas a minha filha mais velha leu mais de cinco livros durante estes meses. Já vai no segundo volume das sagas Harry Potter e Clube das Chaves, por exemplo. Vai ser uma leitora compulsiva. No futuro, olharemos para a quarentena como o momento em que ela criou o hábito de ler a qualquer hora do dia. Além disso, ultrapassou algumas dificuldades escolares com a ajuda da mãe-tutora, e reforçou a criatividade artística e a coragem física com a ajuda do pai. Percebe em segundos que tem pela frente um Van Gogh ou um Frida Kahlo. Tem o prazer da escrita e das arts and crafts, papel, tesoura, linha, tecido, lã, desenho. Faz uma ginástica que já é parkour. Na piscina, nada com elegância. Tudo isto foi sedimentado nestes meses de inferno, que ela não sentiu, porque construímos à sua volta uma bateria de mísseis anti covid.

A sensação que temos é que ela cresceu física, mental e escolarmente dois anos em três ou quatro meses. Para a nossa mais velha, esta quarentena terá sido mesmo uma bênção. Sim, ancorada no sacrifício do pai e da mãe, mas não deixa de ser uma bênção. Só que há aqui uma questão que me incomoda: foi uma bênção, porque somos uma família privilegiada. Para milhares de outras meninas deste país, esta quarentena foi o maior dos infernos e a confirmação da morte social e escolar. Mas, se não te importas, esta sensação de culpa social que sinto neste momento fica para outra confissão. Por hoje já chega, pai.