​Do Atlântico aos Urais
01-03-2022 - 11:09

João Paulo II lembra aquilo que nunca deveríamos esquecer, aquilo que, hoje à tarde e mais logo, esperamos que os líderes europeus, em prol dos seus povos e do todo continental, não esqueçam: “é preciso mobilizar as consciências... convencermo-nos da prioridade da ética sobre a técnica, do primado da pessoa sobre as coisas, e da superioridade do espírito sobre a matéria”.

O Papa João Paulo II é reconhecido como uma das figuras mais influentes nos acontecimentos que levaram à queda do muro de Berlim e à consequente reconfiguração do mapa europeu.

A vida da Europa, o seu futuro e a sua ascendência sobre a qualidade dos processos de globalização – que desejava que fossem solidários e de solidariedade – nunca deixaram de ser, para este filho de uma Polónia duramente provada por nazis e sovietes, uma fonte de preocupação e um motivo permanente de magistério.

Ainda corria o ano de 1999 quando, na abertura do Sínodo dos Bispos católicos sobre o velho continente, e já o Papa Woytila avisava que a evolução da primavera democratizadora fazia adivinhar um duro inverno europeu pois, “infelizmente, os entusiasmos suscitados pela derrocada das barreiras ideológicas e pelas revoluções pacíficas de 1989 parecem ter diminuído rapidamente no impacto com os egoísmos políticos e económicos”.

Mas foi em 1980, no início de uma década de avanços e de recuos em direção ao desaparecimento do império soviético e o seu longo alcance sobre um grande número de nações europeias, que o Papa declararia ser uma prioridade cultural, moral e política aprendermos a ver a Europa como uma “Europa inteira – do Atlântico aos Urais”.

Neste discurso impressionante, que deveríamos reler, o Papa dos Direitos Humanos refere-se aos males gerais da “geografia da fome”, aos nacionalismos e aos neocolonialismos, mas é especialmente profético quando apela à consideração da dignidade da pessoa, à sua integralidade, na tentativa de não nos deixarmos “sucumbir de novo à monstruosa alienação do mal coletivo que está sempre pronto a utilizar as potenciais materiais na luta exterminadora dos homens contra os homens, das nações contra as nações.”

Neste discurso à UNESCO, o Papa faz um denso e sustentado apelo à histórica coragem dos europeus para lutarem pelo que é mais importante e para evitarem a catástrofe de uma guerra nuclear: e “o mais importante é sempre o homem, o homem e a sua autoridade moral que provém da verdade dos seus princípios e da conformidade das suas ações a esses princípios.”

Ciente de que a crise política internacional “poderia levar à destruição dos frutos da cultura, dos produtos da civilização elaborada através de séculos por gerações sucessivas de homens que acreditaram no primado do espírito e não pouparam nem esforços nem fadigas”, o Papa invoca, como se fosse hoje, a integridade perante as “razões de geopolítica, problemas económicos de dimensão mundial, terríveis incompreensões, orgulhos nacionais feridos, o materialismo da nossa época e a decadência dos valores morais”, que votaram o mundo a uma “situação de instabilidade, a um equilíbrio frágil que se arrisca a ser destruído de um momento para o outro em consequência de erros de juízo, de informação ou de interpretação”.

Do mesmo modo – e que úteis são hoje estas lições para nós, em face dos gravíssimos perigos que enfrentamos e as cegueiras que a tal conduziram – Woytila pergunta se é possível garantir que “a rutura do equilíbrio não levará à guerra, e a uma guerra que não hesitaria em recorrer às armas nucleares”. Descrente do argumento dissuasor, interroga “como se poderá ter a certeza de que o uso de armas nucleares, mesmo para fins de defesa nacional ou em conflitos limitados, não trará consigo uma escalada inevitável, levando a uma destruição que a humanidade não poderá nunca nem encarar nem aceitar?”

Como se tivesse sido hoje de manhã, João Paulo II lembra aquilo que nunca deveríamos esquecer, aquilo que, hoje à tarde e mais logo, esperamos que os líderes europeus, em prol dos seus povos e do todo continental, não esqueçam: “é preciso mobilizar as consciências... convencermo-nos da prioridade da ética sobre a técnica, do primado da pessoa sobre as coisas, e da superioridade do espírito sobre a matéria”. Assim, talvez possamos evitar a guerra e aprender a ser uma melhor Europa e, um dia, a Europa sonhada do Atlântico aos Urais.