A celebração da vida pela elevação da morte
30-10-2020 - 07:34

Neste ano difícil, depois de Todos os Santos e Fiéis Defuntos, virá com certeza uma provável supressão do Natal? Esse, alguns o disseram há muito, também já é quando o homem quiser, tornando-se a celebração do consumo e do narcisismo.

Pela primeira vez, desde sempre na história conhecida das nações, muitos de nós não vamos poder estar junto dos que nos são mais queridos e já partiram.

Por razões preventivas de saúde física, sacrificando novamente as de ordem psíquica e social (contidas na definição da OMS), a circulação entre concelhos será proibida nas datas em que anualmente muitos se organizam nos necessários rituais do luto necessário em volta da perda e da morte, para que justamente a vida possa continuar a ter o seu sentido mais profundo: que há para além de mim? Que existe depois desta existência?

Por isso, relembro nesta ocasião pequenos pontos-chave que parecem cada vez mais omissos numa sociedade que há muito se afastou da noção da doença, lida mal com a presença da morte e faz da vida uma corrida de contínua corrida e falsa infalibilidade.

Todos somos mortais. Todos precisamos de, ao longo da vida, ir organizando suficientemente bem esse conceito, na relação connosco próprios e com a noção de presença ou ausência física e emocional dos outros.

A negação da morte é um imenso ataque à noção de vida.

O que torna o homem consciente de si mesmo e do outro é a percepção da finitude: a omnipresente angústia de morte, incluindo as suas variações “minor” de separação e perda.

As pessoas e as sociedades organizam-se em volta de rituais. A sua abolição produzirá os dois efeitos extremos: a paralisia psíquica (o desinteresse, a apatia, o vazio depressivo) ou, no oposto, os movimentos de zanga e raiva indiscriminada.

A presença emocional do outro (incluindo perante a sua ausência física como na morte) celebra-se na continuidade do tempo, na evocação das memórias mais marcantes (incluindo as sensitivas), das recordações significativas, em suma, de tudo quanto representa formas de inscrições psíquicas.

A vida também se vive pela morte e seus equivalentes emocionais, mesmo em tempos em que estes conceitos parecem subitamente negados: a importância do vazio, a necessidade do silêncio, a procura de uma luz que quer acender (uma vela).

A morte também precisa de vida, de festa e celebração em seu redor, para que não seja sentida de uma maneira tão dura e difícil: os ramos de flores, a cor e a harmonia que exibem.

Neste ano difícil, depois de Todos os Santos e Fiéis Defuntos, virá com certeza uma provável supressão do Natal? Esse, alguns o disseram há muito, também já é quando o homem quiser, tornando-se a celebração do consumo e do narcisismo.


Pedro Strecht é médico pedopsiquiatra