“O militar é por excelência o homem e a mulher da paz”
26-12-2021 - 09:30
 • Ângela Roque (Renascença) e Lígia Silveira (Ecclesia)

O bispo das Forças Armadas destaca o papel “incontornável” dos militares e forças de segurança, que têm estado “em todas as frentes” da pandemia. D. Rui Valério acredita que apesar dos recentes casos polémicos, a imagem destas forças permanece “incólume”.

O bispo das Forças Armadas e de Segurança não tem dúvidas de que a gestão militar do processo de vacinação contra a Covid, e o “combate direto” que estas forças têm assegurado ao longo de toda a pandemia, provaram que são essenciais ao país, e isso é hoje mais valorizado pela sociedade e pelo próprio Estado. Para D. Rui Valério casos como o do tráfico de diamantes, que envolveu militares ao serviço na ONU na República Centro Africana, ou o das agressões a imigrantes em Odemira, por elementos da GNR, são uma “exceção” que não pode confundir-se com o todo destas forças, onde o rigor, a ética e o serviço aos outros são a regra.

Nesta entrevista o responsável pela diocese castrense fala, ainda, da vivência do Natal, num ano que também para si foi de perdas familiares. D. Rui Valério, que já foi capelão da Marinha, conta que a assistência religiosa é fundamental para quem está destacado em missão, e que as celebrações de Natal são dos momentos mais especiais.

Há um ano, em entrevista à Renascença, considerou que os militares “são essenciais para a vida da nação", e apelou a um maior reconhecimento das Forças Armadas e de Segurança na sociedade portuguesa. Houve mudanças neste período? A sociedade portuguesa já valoriza mais o papel dos militares, sobretudo depois do trabalho da ‘Task Force’ de vacinação?

Sim, houve mudanças e houve uma evolução, mercê do contexto tão particular que Portugal tem vivido neste último ano e meio, onde todas as nossas atenções e forças estão focalizadas no combate à pandemia, no qual as Forças Armadas têm emergido em todas as suas fases - e , se me permite, vou explicar que fases são essas, onde as Forças Armadas têm tido um papel relevante, reconhecido por todos os setores da sociedade: em primeiro lugar têm estado presentes no combate direto - apoio aos serviços médicos, acolhimento aos doentes, no fazer aquelas ações que tantas vezes a sociedade civil não está preparada para efetuar, como por exemplo o transporte dos mais idosos, dos lares, portanto, tem havido uma presença das Forças Armadas e das Forças de Segurança na frente da batalha; depois, as FA têm tido um papel preponderante também na campanha de vacinação, com a ‘Task Force’, onde emergiu a eficácia da sua ação, a acutilância da sua programação e a dedicação dos seus agentes, que no caso são os militares. Mas, o grande mérito, se me é permitida esta expressão, que as Forças Armadas e de Segurança tiveram nesta campanha de vacinação foi a de - juntamente com outros setores e outras forças, naturalmente, e aqui está incluído de uma forma principal e até bastante saliente a própria Igreja - terem um papel relevante no que diz respeito ao caminho de confiança que os cidadãos portugueses vieram a fazer relativamente à vacina.

O país devia recorrer mais vezes ao contributo dos militares?

Acho que sim. Acho que da mesma forma que nós vimos agora os militares e as Forças de Segurança atuarem no terreno, mas sobretudo naquela dimensão motivacional, ou seja, esta confiança e este à vontade que os portugueses têm em se deixarem vacinar, em recorrer à vacinação, esta confiança brota de onde? Eu aqui encontro como resposta a existência de pessoas e instituições da confiança da população – e refiro a Igreja, as Forças Armadas e as Forças de Segurança.

Tem sido muito elogiada a nivel mundial a taxa de vacinação portuguesa. Deve-se ao foco que os militares imprimiram no estabelecer essa confiança entre a população portuguesa?

Eu interpreto assim, que hoje o sucesso ou não da campanha de vacinação numa determinada nação depende do grau e da capacidade de confiança que a população deposita relativamente a esse evento e a essa proposta, a essa dádiva.

Situações como o tráfico de diamantes, que envolveu militares portugueses ao serviço da ONU na República Centro Africana, vêm beliscar essa imagem de confiança que os portugueses criaram?

Antes de mais vou situar este problema, este drama, esta tragédia - vou-lhe chamar assim - dentro de um contexto mais amplo: quando falamos de Forças Armadas e Forças de Segurança estamos a falar de instituições cujo sentido de missão e de vida é o rigor, a disciplina, a entrega, o ser tudo e dar tudo pelo seu país. Falamos de mulheres e homens que simbolicamente andam vestidos com uma farda para dizer que eles próprios já não pertencem a si, mas são todos para a nação, para o serviço aos cidadãos e a Portugal. Segundo ponto: no caminho de formação que é dado, seja aos elementos das Forças Armadas, seja aos elementos das Forças de Segurança, a ética tem uma responsabilidade e um lugar absolutamente central.

Então, o que é que aconteceu?

Quando nos confrontamos com situações como aquelas que acabaram de ser enunciadas – e sabemos muito pouco, para além daquilo que foi ventilado pela comunicação social -, não haja dúvida de que estamos a falar de uma andorinha num contexto de uma primavera. Ou seja, as Forças Armadas não são, de todo, isso.

Não confundir a parte com o todo?

Exatamente. Seria ótimo, seria ideal e maravilhoso que não estivessemos a referir esse problema que aconteceu, no entanto, quero dizer que é a todos os títulos uma exceção, exceção! Porque aquilo que é a regra é que militar e elemento da força de segurança se comporte com uma conduta de acordo com os mais rigorosos padrões éticos, morais, de humanismo e de autenticidade.

Há dias D. João Marcos, bispo de Beja, confrontado com a situação de agressão (da GNR) a imigrantes em Odemira, disse que estas situações não beliscam a imagem que a sociedade portuguesa tem das Forças Armadas e de Segurança. Subscreve esta ideia?

Subscrevo completamente. Sou levado a pensar que o militar e o elemento da força de segurança são, como todos nós, seres humanos, com momentos em que aquela presença de espírito do que somos, do que é a nossa missão, e até do que o nosso ser representa e efetivamente é - ou seja, aquela elevação dos padrões morais e éticos -por vezes diminui um bocadinho de intensidade... Eu admito que na vida de um cidadão isso possa acontecer, e é assim que olho para ambos os problemas referenciados. No entanto quero sublinhar este pormenor a que fez referência: a imagem das Forças Armadas e de Segurança. Ela está incólume, completamente, porque aquilo que é a regra e a normalidade é que estamos a falar de mulheres e homens - volto a repetir - que não vivem para si, nem em função de si, são o que são pelos portugueses, pelo seu país e pela sua nação.

E sentem-se reconhecidos por parte do Estado?

Hoje o Estado é sempre o retrato e o representante daquilo que é uma consciência mais vasta, coletiva. É com agrado que posso testemunhar o reconhecimento - ainda agora, recentemente, o primeiro ministro o fez com a visita às nossas forças nacionais destacadas. A visita, só em si, já é um ato de reconhecimento, de solidariedade e partilha, sobretudo nestas alturas de grande intensidade, do ponto de vista emocional e afetivo.

Há um reconhecimento, uma consciência no país, em todos os estratos e em todos os níveis, daquele que é o papel verdadeiramente incontornável que hoje - como no passado, e certamente como no futuro - as Forças Armadas e de Segurança estão a dar ao país e aos portugueses.

Este ano, neste Natal, não visitou os militares em missões no estrangeiro, mas na mensagem que lhes dedicou sublinha a afinidade da missão militar com os valores cristãos e destaca o contributo que as forças militares e de segurança têm tido a favor da paz e contra a indiferença - diz que são quem leva esperança aos “não-lugares” do mundo atual. O que são estes não-lugares?

É uma particularidade das forças militares e de segurança, e foi com alguma surpresa, agradável, que descobri que muito do léxico, da gramática e do vocabulário que usamos para descrever, transmitir e narrar a alegria, a esperança e a paz do Natal, é um léxico que depois reencontramos na missão das Forças Armadas.

Gosto muito daquela história que sucedeu no 25 de dezembro de 1914, nos campos de batalha da I guerra Mundial, na Bélica, quando no próprio dia de Natal soldados alemães e soldados ingleses, inimigos, saíram das suas trincheiras para irem ao encontro uns dos outros e celebrarem o Natal, trocando votos de bom Natal. Eis aqui o que é o espírito mais profundo, seja do Mistério do Natal, seja da missão das Forças Armadas.

O militar quando opera e quando age, seja numa Unidade ou num campo, como é o da frente nacional destacada, ele já saiu das suas trincheiras. Peço perdão por este paralelismo, mas da mesma forma que no Natal eu contemplo que o Verbo se fez carne - porque o Filho de Deus saiu do Pai, Jesus próprio, para descrever o seu movimento de encarnação e usa esta palavra 'saiu'; e o mesmo S. José e Nossa Senhora, que saíram de Nazaré para irem a Belém no cumprimento da vontade do Altíssimo; e os Pastores também foram homens de saída, porque saíram dos seus campos onde estavam a pastorear os seus rebanhos, para irem ter com Jesus, o Deus feito Menino; e também os Magos. Ou seja, há aqui um movimento de saída, de ir ao encontro, que é por assim dizer a espinha dorsal do Mistério natalício, mas que reencontramos hoje nos campos de ação onde estão os militaes a trabalhar.

Gostava de sublinhar que o militar é por excelência a mulher e o homem da paz. Qual é o significado da saudação, por excelência, que um militar troca com os outros, com os seus superiores e os seus subalternos, que é a continência? A continência tem as suas origens naquele tempo onde se erguia a mão para mostrar que nenhuma arma letal era escondida entre os dedos - estamos a falar do tempo em que a arma letal era uma pedra lascada, portanto, mostrava-se a mão, erguendo-a. Era um sinal de paz. Ora, é a paz que percorre, calcorreia e caracteriza a ação dos militares, por isso estou tão à vontade em falar desta vida e desta missão neste tempo de Natal.

Num um ano que continua a ser difícil (por causa da pandemia) é-nos novamente pedido que façamos opções sobre com quem vamos partilhar o Natal. Sabemos que muitos portugueses perderam os seus entes queridos… foi o seu caso, perdeu o seu pai este ano. Como é viver este momento sem a presença de quem nos era próximo?

A grandeza e o mistério do amor que nos foi revelado, mostrado e colocado na nossa vida e na nossa realidade histórica por Jesus, foi que o amor tem a sua dimensão empírica, física, presencial, mas o amor é uma grandeza que transcende, não só o espaço e o tempo, porque nós, por mais distante que a pessoa esteja do ponto de vista geográfico, nós amamo-la; por mais distante no tempo que a pessoa já tenha partido, continuamos a nutrir por ela um amor vivo. Porquê? Porque o amor é verdadeiramente uma grandeza que está para além, é transcendental. Por essa razão, para nós cristãos, a caridade, ou seja, o amor superlativo, é considerado uma virtude teologal, porque é superior, transcende estas coordenadas e, por isso, transcende a presença física.

Sinceramente, não me sinto em nada diminuído ou reduzido, no afeto e na perceção da presença de quem amamos, mesmo que já estejam a participar da eternidade de Deus. Não me sinto diminuído por essa ausência na presença, ou por essa presença na ausência.

O que acabo de expor é o que é o âmago da grandeza e intensidade do amor tal como o cristão o vive. É por isso que no mistério por excelência por nós celebrado, onde o além e o aquém se tornam um único acontecimento na Eucaristia, nós com os anjos, com os santos, os coros celestes e os nossos entes queridos que já partiram para a eternidade, fazemos uma celebração única, numa comunidade única. A única diferença é que uma está já a viver da glória eterna, aquele estado que as pessoas difíceis dizem o estado escatológico, e os outros vivem dentro da temporalidade e da nossa condição histórica. Mas o ardor continua vivo.

Esta é uma conversa que estamos a transmitir no dia 26 de dezembro, mas foi previamente gravada antes do Natal e do seu aniversário, que celebra a 24 de dezembro. Onde vai passar estes dias?

Tenho continuado a celebrar a efervescência do Natal nas unidades militares. Acabo de chegar da Escola das Armas de Mafra, onde tivemos uma manhã bastante intensa, toda focalizada e centrada na festa da esperança e alegria, que é o Natal. Amanhã irei a Santa Margarida, todo o dia, e na quinta-feira irei estar no Hospital das Forças Armadas, a visitar os nossos doentes, para lhes levar uma mensagem de paz e de esperança e uma mensagem de amor, ou seja, para receber aquilo que, na condição em que se encontram, têm para oferecer, que é tanto. No dia 24 aceitei participar do ministério da reconciliação, ajudando um pároco e irei estar bastante presente, e espero próativo.

Não obstante esta distância física dos nossos militares que operam nas Forças Nacionais Destacadas (FND), a verdade é que temos promovido celebrações via Zoom, nas quais eles participam. Está também planeada uma iniciativa de outra natureza só que, como compreende, é difícil dizer o como e o quando, porque se revestem, por motivos de segurança, de algum segredo.

Tem sempre significado, para quem está destacado e fora do país em missão, receber a presença do bispo das Forças Armadas. Em anos anteriores D. Rui Valério procura ter essa presença. Que significado isso adquire para as forças que estão no terreno a celebrar a este tempo em missão e longe das suas famílias de sangue?

Vou falar a partir da minha experiência: para eles a importância deriva de ser um elo através do qual se sentem ligados à sua família, ao contexto, tradições e à sua terra.

Normalmente, nas vezes em que fui, imediatamente antes de iniciarmos a celebração da Eucaristia, faziam questão de nos contar como eram as tradições natalícias nas suas terras. Era um reviver, de continuar e de estar unidos, em comunhão, com o seu contexto vital e existencial.

Não haja dúvida que só quem tem experiência do que é permanecer seis meses consecutivos em regime de FND percebe que é uma vida muito proactiva, muito intensa, muito de tarefas. Há sempre tanta coisa para fazer e quando temos aquela hora e meia para celebrar a Eucaristia natalícia é um tempo de paz e serenidade.

Há uma palavra que resume a celebração da eucaristia de Natal nas Forças Nacionais Destacadas: é um tempo de reencontro. Reencontro com as suas raízes, contexto, mas depois há um reencontro consigo mesmo. É ali que pensam, que fazem alguma síntese das suas vidas. É neste contexto de reencontro, que é o grande reencontro com Deus, que na celebração do Natal renova os mistérios do amor e da entrega por todos nós.

Aproximamo-nos do fim da nossa conversa mas não queríamos deixar de lhe perguntar como está a decorrer o processo sinodal na diocese castrense?

Tivemos uma reunião via Zoom na passada semana participada por toda a comissão, que é constituída por um sacerdote coordenador e depois tem um representante de cada um dos ramos das Forças Armadas e de Segurança. Surgiram iniciativas e uma delas está a decorrer, aproveitámos uma sugestão da Polícia de Segurança Pública.

Internamente procederam a qualquer coisa de muito parecido com a sinodalidade, em que enviaram, pelos meios digitais, propostas de reflexão, de pensamento e solicitaram perguntas e reações. Nós assumimos este estilo porque tem uma prática e é aquilo que vamos proceder.

O que sente que os militares pedem à Igreja?

Os militares pedem em primeiro lugar a presença da Igreja. A presença do capelão - e na pessoa do capelão vejo a presença da Igreja - é desejada, querida e ansiada.

O capelão é uma referência dentro de uma unidade. “O capelão é uma referência dentro de uma unidade. Por um lado representa a presença do transcendente, a presença de Deus, d’Aquele que zela e vela por todos nós e nos guia. Mas o capelão tem uma particularidade que só o capelão tem: é um homem transversal. Muito embora em contexto de Forças Armadas exista a distinção entre ser praça, ser sargento, oficial, o capelão é uma pessoa intercomunicativa, uma ponte que liga tudo isto. Isso é maravilhoso até para os próprios militares.

O capelão está presente nos momentos fundamentais, seja da vida da pessoa enquanto militar, seja na vida da pessoa enquanto elemento, homem ou mulher, de família.

Vou dar este pequenino testemunho: neste tempo da pandemia foi maravilhoso verificar que um dos nossos capelães, que tinha a seu cargo um hospital militar e, na impossibilidade de o acompanhamento final poder ter sido dentro da normalidade que todos gostamos e nos dá conforto, ele tinha o cuidado de, depois, com a família, na própria casa da família, se reunir, salvaguardando todas as diligências e todas as precauções. Ali reviviam quase na integridade o momento do adeus. Era salvaguardada a intimidade e o aconchego, e isto fez tanto bem àquelas pessoas. É maravilhoso ouvir hoje o testemunho de quem viveu a experiência de partir um ente querido do seu convívio, mas que depois ficou com aquele preenchimento de lhe ter dito o adeus adequado.

A presença do capelão e da Igreja no seio das FAS é querida, é estimada, mas a todos os níveis, seja a nível dos militares, dos elementos das FAS como da tutela, entenda-se os ministros, secretários de Estado.