Deus não é Príamo
26-11-2021 - 06:55


Na minha conversão, há um elemento-chave que, apesar de ser fundamental, é muito difícil de transpor para palavras. Em exercícios espirituais com os jesuítas, já senti esta emoção como se fosse uma coisa material tão palpável como este ecrã; já me comovi sozinho só a pensar sobre esse ponto: a tremenda humildade de Deus. Apesar de ser o criador, Deus é modesto e pratica a renúncia. Deus renuncia. Aquilo que nos é pedido nas Escrituras, a renúncia (temos de renunciar a prazeres e ambições em nome dos outros) é cumprido desde o início por Deus. Ele lidera pelo exemplo. Apesar de invisível, está na frente de combate, qual Alexandre impalpável e omnipresente.

Como diz CS Lewis no “The Problema with Pain”, Deus cria cada pessoa como uma peça única e cada um de nós tem a liberdade para recusar Deus. Deus cria a criatura, eu ou você, caro leitor, e dá a essa criatura a possibilidade de negar o criador. Só há liberdade humana neste pressuposto: o pressuposto de que podemos negar Deus. Ele não nos criou para sermos servos acríticos e geneticamente impossibilitados de negar Deus, não. Ele não nos criou como robôs incapazes de negar o dono. É esta a dimensão do seu imenso amor por nós: criou-nos livres e, por isso, Ele submete-se, desde o início, à possibilidade de ser negado pelas suas criaturas. Pensar e comover-me com esta humildade foi um passo fundamental na minha conversão já tardia. Deus não é um tirano, é um pai e, como tal, está por inerência sujeito à rebeldia do filho. É por isso que Deus não é o deus de “Watchmen”, de que falei aqui há uns tempos: não cria seguidores acríticos, mas sim filhos potencialmente rebeldes.
A humildade de Deus prossegue na ética da manjedoura. Então o filho de Deus vai nascer no local mais sujo e pobre? Então o filho de Deus não nasce como herdeiro de um império? Então o filho do Criador nasce na província esquecida e desprezada junto de pastores e enquanto ‘filho’ de gente humilde? A humildade de Deus no nascimento de Jesus só é superada pela humildade de Deus na morte de Jesus. Ele não impede a morte do filho e deixa-o ficar na cruz. Deus não é da nossa escala, faz estas coisas inverosímeis mas certas. Na ‘Ilíada’, Príamo exige amortalhar o seu filho, Heitor. Só que Deus, Ele, não é Príamo. É Deus. Esta humildade, o pilar do mundo, foi retratada de forma belíssima por Charles Péguy mesmo no final de “Os Portais do Mistério da Segunda Virtude” (Paulinas):
“Todo o homem tem o direito a amortalhar o seu filho
todo o homem à face da terra.
Se tiver a grande infelicidade de não ter morrido primeiro.
E só Eu, Eu, Deus, com os braços atados por esta aventura,
Só Eu nesse minuto, pai como tantos pais,
Só Eu não podia amortalhar o meu Filho”.
Ainda bem que Deus não é Príamo.