Presidente do Conselho de Ética receia “comercialização da eutanásia”
21-01-2021 - 06:33
 • Eunice Lourenço (Renascença) e Helena Pereira (Público)

Jorge Soares afirma que hoje em dia “há muito mais gente a aceitar que haja pedidos de morte antecipada”, mas alerta que a eutanásia implica “sofrimento adicional”.

O médico patologista Jorge Soares explica os riscos da legalização da eutanásia, aprovada esta semana na Assembleia da República e fala sobre o sofrimento solitário de alguns doentes. Uma entrevista para ouvir aqui ou esta quinta-feira às 23h na Renascença.

O Parlamento aprova esta quinta-feira na especialidade a legalização da eutanásia. O CDS pediu o adiamento da votação na semana passada, argumentando que o momento pandémico não é o mais apropriado. Que lhe parece?

Não sei se é exatamente isso que queria o CDS. Mas no momento em que estamos preocupados com muita gente que está a morrer e que não devia ter morrido, se houvesse outras condições, fica agressivo estarmos a falar de modalidades jurídicas para legalizar a morte antecipada. Há aí um problema de sensibilidade, mas a sensibilidade é com cada um.

Esta discussão devia ser diferida no tempo por causa da Covid-19?

Isso não digo. Entendo que algumas pessoas fiquem um bocadinho incomodadas por se estar a discutir este assunto, quando há outro tão importante. Mas não estou aqui a alinhar junto daqueles que acham que este texto devia ser diferido. É um texto que fez um trajecto longo, desde 2017. O caminho também foi feito na sociedade. Temos de o reconhecer. Não conheço o texto final – este não foi submetido a parecer, mas infiro que não anda longe dos projectos apresentados. É um exercício de síntese.

“Considera-se eutanásia não punível a antecipação da morte por decisão da própria pessoa, maior, em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva, de gravidade extrema, de acordo com o consenso científico, ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde.” Esta foi a definição a que se chegou por consenso. Que lhe parece?

A definição procura salvaguardar que a lei não possa abrir esta faculdade jurídica a situações que não são aquelas em que os parlamentares pensaram.

Enunciaram logo as condições que são muito limitativas e que podem dar resposta a pessoas que estão em agonia, em sofrimento extremo e temos de reconhecer que há pessoas em final de vida em grande sofrimento.

O sofrimento é uma experiência solitária e há pessoas que têm um sofrimento que consideram que é insuportável e não vêem horizonte na sua vida. Tenho um grande respeito por quem pede para partir. A compaixão impele-nos a ter um grande respeito e a não fazer juízos de valor sobre isso. Se me pergunta se era capaz de os ajudar a partir: não.

Como é que podemos ajudar estas situações? Melhorando a medicina paliativa – mas nem todos os doentes que se encontram nas condições que enunciou pretendem medicina paliativa. E, por outro lado, a medicina paliativa só pode dar resposta a 20% das necessidades, não por falta de esforço destes profissionais, que são heróis nesta cruzada de ampliar a medicina paliativa – e deve-se reconhecer algum esforço dos governos em criar uma rede que os possa apoiar. É uma questão também vocacional.

Se perguntarmos a um estudante de Enfermagem ou Medicina o que quer ser quando se especializar, todos eles falam em medicinas tecnológicas, em salvar vidas. Esta parte da medicina muito pesada, e de compaixão, tem algumas dificuldades.

Das suas palavras, depreendo que considera que a sociedade está hoje preparada para aceitar esta nova legislação?

Não digo preparada, digo que há muito mais gente a aceitar que haja pedidos de morte antecipada.

E também há mais sensibilidade para a medicina de compaixão de que falava, de lidar com a morte, que é uma coisa sobre a qual todos tendemos a falar pouco.

Não falamos das coisas que nos afligem, não é? Fugimos a esse assunto e só olhamos para ele de fora.

Esta legislação, e houve muita preocupação em melhorá-la, tive algumas conversas como o deputado João Semedo e sempre nele percebi uma enorme preocupação em que esta situação não deslizasse para objetivos que não eram os que estavam a ser pensados. Mas há três problemas muito grandes: a construção deste caminho administrativo-legal, que é muito complexo – haver um médico orientador que organiza o processo e pergunta ao doente não sei quantas vezes e que contacta um médico especialista e um psiquiatra para avaliar a consistência da vontade, se houver muitas dúvidas. Isto é um processo longo e penoso e que induz sofrimento adicional.

Outro problema é a participação dos médicos. Não se assegurou que primeiro havia médicos em número suficiente para responder a estas necessidades. Não há muitos médicos que sejam capazes de aceitar conduzir o processo.

Mas será um pequeno número de casos, portanto não serão precisos muitos médicos.

Quando estamos a criar uma lei, a sua aplicação tem de ser universal. Podemos estar em Alcoutim, Vimioso ou Mondim de Basto. Não estamos a falar da periferia de Lisboa.

Em alguns países, verificou-se as rampas deslizantes. Começamos com uma lei com uma formulação muito fechada e acaba por se ir abrindo. Como se consegue travar isso?

Neste momento, estou mais preocupado com uma outra rampa deslizante, não é tanto a das portas que se abrem. Como podemos controlar? Através de vigilância.

Está preocupado com quê?

Acho que o SNS não está em condições de assegurar o ato de produzir a morte em condições adequadas nas suas instalações de cima a baixo do país. A lei diz que as instituições de solidariedade e os privados podem assumir esse papel e é aqui que acho que, não havendo condições no SNS...

Essa questão também se colocou quando foi a despenalização do aborto e o SNS teve de se adaptar.

Era muito mais fácil. Abortamentos sempre ocorreram no SNS por razões de saúde. Não é uma prática diferente do que se fazia.

Mas conclua o seu raciocínio sobre não haver condições no SNS.

O meu receio é que haja uma comercialização ou uma rampa deslizante para a criação de uma área comercial, que isto se constitua como uma área de negócio, o que é muito perigoso.

Eu não estou a ver que, por exemplo, o Hospital de Bragança tenha as condições para que aquilo se faça com dignidade, serenidade. Quanto mais periférico, maior número de dificuldades e maior número de médicos com objeção.

Podemos ter uma lei feita em nome da dignidade, mas que poderá não assegurar essa dignidade, é isso?

É sempre difícil quando lidamos com questões desta complexidade encontrar uma lei ou um enunciado jurídico que seja simples a dar resposta a todos os problemas. Muita gente pode dizer: “Bom, mas o caminho faz-se a caminhar.”

O conselho terminou o seu mandato em Março do ano passado e ainda não houve recondução. Porquê?

Nós acolhemo-nos na AR. Os partidos é que fornecem um contingente de seis personalidades.

E esqueceram-se?

Esquecidos não podem estar, porque eu próprio já alertei o Parlamento quatro vezes desde setembro de 2019. Embora o conselho continue a funcionar, e tem legitimidade, falta-lhe alguma legitimação.

E nesta altura há muitos temas.

Também acho. As entidades independentes que têm de nomear já fizeram as suas nomeações logo no início de 2020 e ninguém pode tomar posse, porque só podem tomar posse com os outros escolhidos pela AR.

Existem nomes, mas não estão em funções. O que está em funções é ainda o conselho que vem detrás. É uma expressão de pouca consideração.

Pensar ainda é uma coisa perigosa em Portugal e portanto ter alguém que possa fazer uma reflexão de natureza ética relacionada com as situações emergentes se calhar incomoda muita gente.