O presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) defende a necessidade de melhorar a articulação entre magistrados e com outras entidades durante as investigações. Em entrevista à Renascença, Adão Carvalho diz que é preciso um Ministério Público com hierarquia que "assuma responsabilidades".
Alerta para a falta de recursos humanos que coloca em risco algumas missões do Ministério Público e, relativamente aos programas eleitorais para a Justiça, lamenta que apostem quase sempre em mudar os códigos, quando o principal problema da justiça é outro.
Estes vão ser alguns dos temas discutidos no XIII Congresso do Ministério Público, que arranca esta quinta-feira, nos Açores.
Qual é o principal mote do XIII Congresso dos Magistrados do Ministério Público? Sobre o que vai refletir e quais poderão ser as conclusões?
O objetivo é discutir temas importantes e ajudar à reflexão dos magistrados do Ministério Público sobre temas importantes como a organização do Ministério Público e as carreiras. Convidámos também pessoas de outras áreas, porque a ideia é que exista também aqui alguma complementaridade naquilo que são as abordagens para ajudarem o Ministério Público a oferecer uma resposta com maior qualidade e mais diferenciada.
Olhando para o Ministério Público, o que diria desde logo que é preciso afinar na forma de atuação?
Um dos temas que vai ser tratado é a articulação e o trabalho em equipa, ou seja, o Ministério Público hoje para responder aos novos desafios, designadamente no domínio criminal, precisa desde logo melhorar a sua articulação com aqueles que coadjuvam na investigação criminal, (os órgãos de polícia criminal, a Polícia Judiciária, a PSP, GNR, Autoridade Tributária) e, por outro lado, precisa também de melhorar internamente essa articulação.
Nós temos cada vez mais um Ministério Público especializado, não só em matérias, mas também em momentos de intervenção no processo, porque temos magistrados só a fazer inquéritos, outros magistrados só na fase de instrução e magistrados só na fase de julgamento. Temos assistido que nem sempre existe coerência na atuação do Ministério Público, porque os magistrados são dotados de autonomia e, portanto, poderíamos ter uma posição em julgamento diversa daquela que foi tida pelo magistrado do Ministério Público no inquérito. Isso implica articulação que passa, sobretudo, por uma intervenção da hierarquia no sentido de estabelecer pontos de contato para que exista coerência na atuação do Ministério.
E fará sentido manter o mesmo procurador desde que o início do caso até ao final do julgamento, caso exista?
Isso poderia ser uma solução importante em alguns processos, sobretudo alguns mais complexos. O problema é que a falta de magistrados do Ministério Público não o permite.
Se retirássemos do inquérito, por exemplo, de um DCIAP ou dos DIAPS Regionais, magistrados para as seguintes fases processuais, os inquéritos que depois tinham nesses departamentos iriam ficar parados porque, evidentemente, o trabalho seria depois na sala e em julgamento, o que levaria ao atraso dos outros processos que ficavam cada vez mais para trás.
Eu penso que isso se resolve facilmente e a verdade é que em algumas situações já tem acontecido isso, a articulação do trabalho em equipa, ou seja, há processos que exigem que o magistrado que vai fazer o julgamento esteja já na fase de inquérito. Temos que afinar aquilo que é a articulação interna para que haja depois uma resposta coerente e consistente do Ministério Público.
Muito se vai falando da independência do Ministério Público, principalmente quando surgem casos mediáticos. Considera que aqui é necessária alguma mudança na atuação da hierarquia e nas ordens que são dadas, deverá haver mais influência do topo da hierarquia conforme os casos que tenham em mãos?
O atual estatuto já compreende um quadro de intervenções ao nível hierárquico dos diferentes graus que lhe permite tomar e participar nos processos e adotar as decisões que sejam mais adequadas tendo em vista o que seja a melhor resposta do Ministério Público, desde a PGR até aos procuradores regionais, aos coordenadores de comarca, os diretores do DIAP, há vários mecanismos previstos: podem determinar que magistrados possam ir compor uma equipa com outros magistrados que são os titulares dos inquéritos; podem determinar que um determinado processo, por acharem que se justifica estar num outro departamento, transite para esse departamento para ser melhor acompanhado e porque tem magistrados mais especializados naquela matéria. Todos esses mecanismos existem, têm é de ser mais usados.
O que eu acho é que não há falta de hierarquia prevista para o Ministério Público, o que há é que, às vezes, não assumem as suas responsabilidades, por vários motivos, quer porque não a querem assumir, é porque eventualmente não têm condições em face do serviço que têm para fazer.
Quando diz que, às vezes, as hierarquias não querem assumir responsabilidades, porque é que acredita que isso possa acontecer?
Porque a inércia no fundo… Tomar determinada posição num processo implica sempre um ónus, uma responsabilidade, o assumir de uma condução e do risco que esse tipo de intervenção possa ter no processo. Eu não estou a dizer que isso seja generalizado, mas às vezes acontece por vários fatores.
O que no fundo o sindicato leva à reflexão é que é preciso, cada vez mais, que a intervenção seja mais atempada, ou seja, que dentro das possibilidades, mesmo com a falta de recursos, o Ministério Público tente sempre que um processo é sinalizado (tem complexidade, tem repercussão pública), no fundo, canalizar os meios para que a resposta seja o mais rápida possível.
Ainda há muito peso político dentro do Ministério Público, tanto na escolha da procuradora-geral da República como no Conselho Superior do Ministério Público? Isso é saudável?
Tal como está previsto, é saudável. Aquilo que eu já defendi é que na escolha da procuradora-geral da República, mantendo-se o mesmo modelo, deve existir maior transparência. Ou seja, é importante perceber quem se vai escolher e porque é que se vai escolher, o que é que vai trazer ao Ministério Público, conhecer o projeto que a pessoa que irá ocupar o cargo tem pelo Ministério Público. O que nós temos assistido é que é um processo extremamente secreto, sem qualquer escrutínio público.
Como é que responde a críticas que dizem que o Ministério Público produz muitas acusações que terminam em poucas condenações?
Esses dados seguramente não são objetivos, porque nós estamos a viver de algum tipo de processos que são aqueles que vêm a público e que são processos que, em qualquer país do mundo, pelos envolvidos, pela complexidade das matérias, pela clara zona cinzenta em que muitas vezes a lei coloca determinadas estruturas do Estado no seu funcionamento, evidentemente não nesses processos, nem sempre se consegue que todos sejam condenados, porque há questões muito complexas de avaliação. O recurso à prova indireta, que no fundo caracteriza este tipo de processos, leva a que possam existir juízos divergentes.
O que nos dizem os dados objetivos recolhidos todos os anos pela Procuradoria-Geral da República é que em 90% das acusações do Ministério Público em todo o país existe condenação, portanto, significa que o Ministério Público atua com objetividade e com um trabalho de qualidade. Não sei se muitos países da Europa têm este tipo de estatística em termos de trabalho do Ministério Público.
O que destaca dos programas dos partidos para as legislativas em matéria de justiça. Acredita que é possível o tão falado pacto ou convergência?
O que eu vejo dos programas é que, essencialmente, se bastam com aquilo que é mais fácil e, às vezes, aquilo que é precipitado. No fundo, todos preconizam alterações legislativas para tudo e para nada.
Hoje, temos menos de um terço dos funcionários judiciais do que tínhamos há 10 anos e há serviços, sobretudo ao nível do Ministério Público, que estão a entrar em rutura por falta de funcionários. E essa é que devia ser uma das grandes prioridades. Depois é a aposta no reforço daquilo que são os meios de em termos de recursos económicos de humanos ao dispor do Ministério Público e da investigação criminal de forma a lhe dar maior celeridade.
Nos últimos anos foram feitas muitas alterações que pouco tempo depois se percebeu que foram mal pensadas, porque foram a reboque de processos concretos.
O diagnóstico da justiça está muito feito e, portanto, há muitos anos que vamos falando do mesmo. Continua a ser uma questão monetária que não permite fazer esta alteração tão diagnosticada ou é mesmo uma questão política?
Começa por um conjunto de erros ao nível das opções do passado. Em vez de se optar, por exemplo, em termos de edifícios próprios para instalar tribunais, optou-se por negócios de arrendamento ou de outra natureza com rendas brutais por parte do Estado, rendas que davam para construir uma série de edifícios com boas condições, próprios e adequados para o funcionamento das estruturas da justiça. Os tribunais são parente pobre. Porque, às vezes, a opção é feita tendo em conta questões de estética e pouco mais.
O Congresso arranca com um estudo que foi feito pelo SMMP sobre as condições de trabalho e o desgaste profissional. O que se conclui?
Os dados, que serão conhecidos na sessão de abertura do Congresso e que depois serão tornados públicos, apontam para fatores preocupantes. Há muito desgaste, hoje temos magistrados que, para além das suas funções, além de terem que acumular serviço com outros colegas, estão a fazer o serviço dos oficiais de justiça porque, como não há funcionários para que os processos possam andar, são eles que têm que fazer esse trabalho, porque senão o serviço paralisa. Há queixas de muitas horas extra dos magistrados dedicadas à profissão. Desgaste por causa da pressão social.