O referendo que ditou a saída do Reino Unido da UE foi em junho de 2016. Só em outubro de 2019 foi possível assinar um acordo de saída, primeiro passo para um eventual futuro tratado de comércio entre o Reino Unido e a UE.
A anterior primeira–ministra, T. May, que até tinha votado contra os britânicos saírem da UE, fez questão em respeitar o resultado do referendo e empenhou-se em duras negociações com a UE. Várias vezes conseguiu acordos, mas a Câmara dos Comuns votava contra eles.
Sucedeu-lhe Boris Johnson, grande obreiro do Brexit, que através de eleições conseguiu uma sólida maioria do partido conservador na Câmara dos Comuns. Em Outubro de 2019 Boris obteve finalmente um acordo de saída com a UE.
Mas agora o primeiro-ministro britânico veio renegar partes desse acordo, não só em discursos, mas apresentando legislação que viola o direito internacional, por exemplo na espinhosa questão da fronteira entre a República da Irlanda e o Ulster (Irlanda do Norte). Um ministro britânico reconheceu a violação no parlamento, mas disse que essa violação era “limitada e específica”... Estaria Boris de má fé quando subscreveu o acordo de saída em outubro do ano passado?
Tudo indica que sim. Basta reparar no prazos curtíssimos que o Reino Unido aceitou para negociar o acordo de saída. Como se acordos tão complexos como este não demorassem anos a negociar.
Boris Johnson ganhou assim um lugar na história, mas pelas piores razões. Nunca o Reino Unido tinha rasgado um tratado antes assinado, como lhe lembraram os ex-primeiros ministros conservadores T. May e J. Major. Palavra dada era palavra sagrada – até mais esta habilidade de Boris Johnson. É um abalo sério no prestígio da mais antiga democracia moderna do mundo, que costumava respeitar o Estado de direito.
Muitos comentadores levantaram a hipótese de esta manobra de Boris J. ser apenas uma forma de pressão sobreos negociadores da UE. Creio que se enganam e que, como aqui já mais do que uma vez afirmei, Boris Johnson quer mesmo uma saída sem acordo. Há muito que ele repete publicamente que uma saída sem acordo será boa para os britânicos.
A irresponsabilidade manifestada na campanha do referendo pelos partidários da saída do Reino Unido repete-se agora. Sem acordo de saída, as relações comerciais entre o Reino Unido e os outros países, incluindo os membros a UE, passará a reger-se pelas normas da Organização Mundial de Comércio. As importações passarão a pagar direitos. É mau para todos, mas é péssimo para o comércio britânico: 47% das exportações britânicas vão para a UE, enquanto apenas 8% das exportações da UE têm como destino o Reino Unido.
E agora levanta-se o risco de um regresso da violência entre protestantes e católicos na Irlanda do Norte, pois o acordo de paz de 1998 impõe que a fronteira que divide a ilha irlandesa se mantenha aberta. Nancy Pelosi já veio avisar que a Câmara dos Representantes de Washington, onde o partido democrático tem maioria, jamais aceitará um acordo de comércio dos EUA com o Reino Unido se a paz na Irlanda for ameaçada.