"Ciclismo à Hitchcock". Sem Pogacar e Vingegaard, Vuelta está "sob suspense absoluto"
26-08-2024 - 16:41
 • Eduardo Soares da Silva

Em dia de descanso, o comentador Olivier Bonamici analisa a primeira parte da Volta a Espanha, já sem João Almeida, que arrisca descer degraus na hierarquia da UAE-Emirates se Adam Yates vencer. Apesar da vantagem larga, Ben O'Connor continua a ser "o outsider".

Sem Pogacar, Vingegaard e Evenepoel, a Volta a Espanha não atraiu, este ano, os tubarões do ciclismo, abrindo espaço para novos vencedores. Olivier Bonamici, comentador da Renascença, afirma que a prova "está ao rubro" e "sob suspense absoluto".

Após nove etapas e em dia do primeiro dia de descanso, é tempo de olhar para o que aconteceu até ao momento.

A classificação geral é liderada por um surpreendente Ben O'Connor (Decathlon-AG2R), que venceu a sexta etapa a solo com grande distância para os restantes candidatos. Ao dia de hoje, leva 3m53s de vantagem para Primoz Roglic (Red Bull-Bora-Hansgrohe), mas continua a ser "um outsider" para Olivier Bonamici.

"É impossível arriscar um vencedor, a verdade de um dia não é a do dia seguinte. Todos os dias há montanha, não há descanso e vamos ter mais sete etapas de montanha em que há ação todos os dias. Está ao rubro", avalia.

João Almeida era chefe de fila da UAE-Emirates e poderia disputar a vitória na prova, mas foi obrigado a desistir depois de testar positivo à covid-19, que lhe pode custar na hierarquia do "Real Madrid do ciclismo".

"Os comboios passam e depois pode ser tarde demais. Se Adam Yates ganha a Vuelta, é evidente que o estatuto dele na próxima época será totalmente diferente", explica.

Era uma grande oportunidade para João Almeida ganhar uma grande volta, sem Pogacar pela primeira vez esta época?

Era uma das grandes oportunidades, mas não a única. Ele tem 26 anos, tem tempo para ganhar uma, mas é evidente que na ausência de Pogacar, Vingegaard e Evenepoel, os três melhores ciclistas do mundo, o João Almeida tinha muitas hipóteses de brilhar. Era possível ganhar, mas no mínimo tinha qualidade para o pódio.

Foi terrível para ele. Começou em Portugal, vinha de uma grande Volta a França, com uma bela equipa. É a segunda vez na carreira que ele abandona uma grande volta por causa do Covid-19. É triste porque em Portugal há quem duvide dele, que desistiu porque não estava bem.

Há pessoas que têm sintomas no covid-19. O João não se sentiu bem, como é possível com covid-19 andar a subir uma montanha? É impossível quando te dói a cabeça.

O que se sabe sobre a etapa em que ele fica para trás? Foram vocês na Eurosport que avançaram a notícia e percebia-se que ele não estaria bem fisicamente. O quanto ficou afetado?

De facto, sabíamos que há dois dias ele não se sentia bem. Mas, muitas vezes, eles falam numa sensação num dia, que estão com más pernas, e depois fazem uma boa etapa. No dia seguinte, já estás melhor.

Tivemos a informação à tarde. Não era normal, ele não é dos melhores do mundo na colocação no pelotão, mas havia algo que tinha de estar a acontecer. As nossas fontes confirmaram o covid-19. Havia uma explicação porque neste nível não perdes tanto numa subida assim, não é possível ir na parte final do pelotão.

Ele tem mostrado regularmente que é muito consistente no apoio a Pogacar. Era a vez dele, de uma afirmação total?

Ele está numa das melhores equipas do mundo, talvez a melhor. É uma equipa com o melhor do mundo, que é o Tadej Pogacar. Nesta equipa muita competitiva - uma espécie de Real Madrid -, a questão é saber quem é o número 2. É ele? O espanhol Juan Ayuso? Ou o britânico Adam Yates? Vamos ver.

Neste tipo de equipas, quando passas ao lado de uma oportunidade – mesmo que não seja tua culpa -, os comboios passam e depois pode ser tarde demais. Se Yates ganha a Vuelta, é evidente que o estatuto dele na próxima época será totalmente diferente.

É a equipa certa para ele? Surgiram muitas críticas de falta de apoio ao João...

Temos de ver. Há duas leituras, mas temos de ter cuidado para não sermos chauvinistas: sempre que ele tem dificuldade, dizer que culpa é dos outros. Não pode ser.

Há, de facto, uma realidade quando é João Almeida na liderança, parece que a equipa não está unida. Em vez de entrar na paranoia que há um complô e que é porque ele é português, e não suposto essas teorias da conspiração, prefiro a análise objetiva.

Ninguém, tirando o Pogacar, venceu uma grande volta nesta equipa. Falta isso, uma equipa com outro líder que tenha vencido uma grande volta e aí pode surgir uma união. Há demasiados segundos lugares e não há lugar para todos numa grande volta.

É ótimo para ele estar na melhor equipa, está a progredir. No ano passado fez top-3 numa grande volta pela primeira vez. Se for para outra equipa, poderia ter o estatuto de grande líder, mas pode ser uma equipa com menos categoria e não ter a ajuda necessária.

Não ter Pogacar, Vingegaard e eventualmente o Evenepoel pode afastar alguns olhos da Vuelta, alguma atenção mediática, mas parece estar a torná-la altamente entusiasmante e imprevisível.

Neste momento, o ciclismo está ultra dominado pelos três ciclistas. Quando nenhum dos três está, a corrida fica mais aberta. Podemos achar que é pena porque não estão os supra sumos da modalidade, mas do ponto de vista do suspense, é um ciclismo à Alfred Hitchcock. Sabemos o início, mas não conhecemos o fim da história.

Neste momento, após 10 dias, é impossível saber quem é que vai ganhar. Com os três melhores do mundo, após uma semana, à partida, já tens uma grande informação e que será um deles. Nesta volta, não.

Tens cinco, seis ciclistas que podem vencer. Não há uma equipa a controlar a Volta a Espanha e, a partir daí, tudo é possível. Até quem está no oitavo lugar, basta estar numa fuga para se recolocar na volta. É o suspense absoluto.

Na última etapa, o Carapaz e o Yates a reentraram por completo na luta da geral... Ainda dá para arriscar um vencedor?

É impossível. A verdade de um dia não é a do dia seguinte. Temos cinco ou seis ciclistas a lutar pela vitória. Ao contrário do Giro e do Tour, e mesmo sabendo que a Vuelta é a menos prestigiosa, todos os dias há montanha. Não há descanso. Vamos ter mais sete etapas de montanha em que há ação todos os dias. Está ao rubro.

O O’Connor perdeu alguma da vantagem que ganhou naquela fuga, mas continua com quase quatro minutos. Mesmo assim não é favorito?

É preciso ter muito cuidado com ele. Nunca fez pódio numa grande volta, mas é uma margem interessante. É uma margem super interessante e ele já fez duas vezes quarto lugar em grandes voltas.

Os outros têm grande experiência, quase todos já venceram. Ele é uma incógnita. Vai ser sempre a abrir, não há um dia que podemos dizer que ele pode descansar um pouco. O’Connor é o grande "outsider", depois temos os veteranos que são Adam Yates, Primoz Roglic e o Richard Carapaz.

Esteve no contrarrelógio em Lisboa. Havia muito entusiasmo? Há capacidade para aumentar a importância do ciclismo em Portugal?

Acho que foi uma excelente notícia. Li vários comentários ridículos que não fazem sentido, que a Vuelta não deveria ter começado aqui. É o chauvinismo que queima neurónios, por assim dizer. A Vuelta já começou nos Países Baixos, em França. Acontece com qualquer grande volta. Serve para divulgar. Qual é a probabilidade dos portugueses verem as grandes estrelas do ciclismo? Há a Volta ao Algarve, mas não tem nada a ver. Três etapas foi algo de extraordinário.

Há alguns pontos negativos. Não houve um marketing à volta disto. Os organizadores esqueceram-se de vender o produto com merchandising, uma caravana publicitária a oferecer brindes. O ciclismo não é só a etapa, é um espetáculo também.

Foi muito positivo, fiquei comovido ao ver adeptos portugueses a aproximarem-se dos campeões. O ciclismo é como a missa: é gratuito. Ninguém tem de pagar. No futebol, é muito complicado aproximar dos craques. Só por aqui, é saboroso o ciclismo.