​Uma mãe alcoólica é necessariamente uma má mãe?
15-10-2021 - 06:42

O livro "The Not Good Enough Mother”, de Sharon Lamb, desmonta muitos clichés confortáveis sobre a vidinha e sobre a educação de crianças. Agrada-me, sobretudo, a maneira como Lamb desmonta os complexos de classe.

Lemos cá em casa um livro que é um abanão, uma carga de ombro, um pé em riste, um murro no estômago, uma cabeçada à Cais do Sodré e um rotativo à Bruce Lee sobre as habituais concepção de paternidade/maternidade. Escrito por Sharon Lamb, o livro chama-se “The Not Good Enough Mother” e desmonta muitos clichés confortáveis sobre a vidinha e sobre a educação de crianças. Agrada-me sobretudo a maneira como Lamb desmonta aquilo que, no fundo, são complexos de classe; preconceitos dos mais ricos e com vidas confortáveis sobre os mais pobres e com vidas mais desconfortáveis. E aqui permitam-me a convocação de uma série de autores, de Orwell a Édouard Louis, de Vance a Ferrante, para fazer uma separação literária e moral entre brutalidade e crueldade. A pobreza é, por inerência, mais dada à brutalidade.

Não há como fugir à questão: na dureza da pobreza, as pessoas tornam-se mais rudes, mais brutas, mais intempestivas e com os vícios mais à vista. No entanto, isso não quer dizer que uma pessoa embrutecida pela pobreza seja mais dada à crueldade do que uma pessoa não embrutecida pela miséria. Há uma diferença ontológica gigantesca entre brutalidade, que é quente e instintiva, e crueldade, que é fria e pensada.

No sua dia-a-dia, o trabalho de Lamb passa por perceber se um determinado progenitor, mãe ou pai, é bom o suficiente para cuidar dos seus filhos. E o que ela nos diz é que, muitas vezes, os média e os burocratas que tratam deste assunto procuram uma perfeição impossível. Lamb diz várias vezes que encontrou pais e mães que são alcoólicos, que gritam ou que até podem bater aqui e ali, mas que não deixam de ser bons pais e boas mães, e que os filhos não deixam de amar estes pais. Estes pais 'imperfeitos' podem até causar traumas aqui e ali, mas nada é pior do que a sensação de perda absoluta que é a retirada destas crianças aos pais. Nós aprendemos a viver com este ou aquela trauma, esta ou aquela palmada, mas não aprendemos a viver com a perda absoluta, com o vazio, com o luto. E uma criança que é retirada aos pais entra em luto mesmo quando os pais são 'imperfeitos'. Portanto, importa perguntar: quantos filhos não estão a ser retirados aos pais de forma precipitada e debaixo de uma concepção de paternidade moralista e de um perfeccionismo impossível e que só parece ser aplicado aos pobres?

Uma mãe alcoólica é necessariamente uma má mãe? Não. Até pode ser uma mãe mais carinhosa e atenciosa do que uma mãe sem vícios. Quando tiramos um filho a uma mãe ou pai, só há um critério que conta: a crueldade sistemática. E ser cruel não é o mesmo que ter este ou aquele vício. Claro que, como salienta Lamb, os pais com vícios patológicos têm de resolver o assunto, têm de acabar com a dependência, mas isso não invalida o seu amor pelos filhos e sobretudo não pode determinar o fim definitivo da sua tutela sobre os filhos.

Lamb fala no livro de um filme que me marcou nos últimos tempos: “Florida Project”. É a história de uma mãe toxicodependente e incapaz de educar a filha segundo qualquer padrão social. No entanto, ao longo do filme, a filha está sempre feliz e cria o seu mundo de fantasia como todas as crianças. A criança só começa a ficar triste e zangada quando aparece a polícia e a segurança social com a intenção de a retirar à mãe. Esta sensação de perda absoluta – perder a mãe – é muito superior aos pequenos traumas que ele pode ou não sofrer através da vida caótica que tem com a mãe.