Sexo e morte
05-05-2017 - 06:30

Tem de haver um mundo equilibrado algures entre a carpideira que nos reduzia à dor e a sexóloga que nos reduz à condição de orangotangos excitados.

Quando os nossos pais nasceram nos anos 30, 40 ou 50, a morte não era uma raridade. Hoje em dia, podemos chegar aos 50 anos sem atravessarmos esse Rubicão moral que é a morte de alguém mesmo próximo.

Esta ausência de sofrimento era impossível há mais de meio século. Aliás, há mais de meio século nem toda a gente chegava aos 50 anos. Morria-se cedo e às mãos de doenças que entretanto foram dominadas pela tecnologia farmacêutica.

A vitória da medicina e da química sobre a doença, sobretudo em países pobres como Portugal, estava muito longe dos actuais quinze-a-zero. As doenças e as mortes constantes ainda estavam no centro da nossa condição; o choro da carpideira era uma das faixas obrigatórias da banda sonora. Desde a infância, a pessoa habituava-se aos acordes da treva. O pai ou a mãe podiam morrer aos 30 ou aos 40; as crianças sabiam que podiam perder a mãe no parto de um irmão mais novo, ou sabiam que podiam perder o tal irmão mais novo, ou os dois. Depois, mesmo que sobrevivesse ao parto, aquele irmão mais novo poderia morrer nos primeiros anos de vida. Perder um bebé ou uma criança para a doença hoje em dia é um inferno raro. Mas, no tempo da minha avó, era tão natural como o vento a passar nas árvores.

Neste contexto, a morte nunca poderia ser o tabu que é hoje; era uma porta de uso frequente que o futuro poderia abrir a qualquer instante. Aliás, nem havia porta, o frio entrava sem licença.

Se a morte não era um tabu, o sexo era com certeza o grande interdito. Ou seja, a sociedade onde os nossos pais nasceram era o exacto oposto da sociedade onde estão a nascer os nossos filhos. Como se vê em vários aspectos (a higienização da Páscoa, o azedume em relação à fé, a distanásia médica, o culto do corpo, a paranóia com a alimentação), o nosso tempo não sabe lidar com a doença, com a dor, com a morte. Até se procura retirar a morte do espaço público. A morte é um embaraço. Os familiares não visitam as campas dos seus mortos no cemitério. O próprio luto já é considerado uma doença pela hiperactiva psiquiatria moderna.

As autarquias até aboliram o termo “cemitério”, agora fala-se em “complexo mortuário” ou “centro funerário”. Ao mesmo tempo que fecha a morte neste casulo, a sociedade abre o sexo por completo, transformando o corpo sexualizado, sobretudo o corpo feminino, na grande presença do espaço público. Os soluços da carpideira deram o lugar aos gemidos de prazer no centro da banda sonora.

O meu pai nasceu numa época que normalizava a morte e que interditava o sexo. As minhas filhas nasceram numa época que normaliza o sexo e que interdita a morte. Não estou a fazer juízos de valor, estou só a constatar uma total inversão dos interditos, que, parece-me, ainda desorienta grande parte dos cristãos. A cristandade ficou sem pé com esta mudança. Mas também me parece que a síntese destes dois tempos tão distintos só poderá ser cristã. Tem de haver um mundo equilibrado algures entre a carpideira que nos reduzia à dor e a sexóloga que nos reduz à condição de orangotangos excitados.