Um país de baixos salários, com investimento público "muito limitado" e onde sindicatos têm pela frente um grande desafio. É esta a análise da socióloga Maria da Paz Campos Lima, que defende que a contestação nas ruas tem de passar pela valorização salarial. Para isso, o Estado tem de apostar em sectores "que podem ser mais prometedores em termos de qualidade de emprego".
Em entrevista à Renascença, Maria da Paz Campos Lima critica a atual política governativa, "de acentuar dramaticamente a mudança da estrutura produtiva a favor dos setores de baixos salários e de baixa produtividade". O sector do turismo é um desses exemplos.
A coordenadora do livro "A Persistência da Desvalorização do Trabalho e a Urgência da sua Revalorização" critica ainda o investimento público na economia, que "tem sido muito limitado, muitas vezes ou frequentemente com o argumento das contas públicas e das contas certas". O PRR terá algum impacto, mas parece "não ser suficiente nem suficientemente ambicioso".
Há ainda ações que "não facilitam a promoção dos baixos salários", como declarações de que os aumentos poderiam conduzir a uma espiral inflacionista. "Felizmente, parece que agora começa a haver alguma consciência e afirmações públicas do Partido Socialista e do Governo, no sentido da necessidade dos aumentos salariais e da valorização salarial", diz a investigadora.
O problema é como é que isso se faz? O acordo de concertação social e os aumentos na função pública não correspondem a um aumento real. "Para além disso, os instrumentos da negociação coletiva, apesar de se ter desencadeado um processo de reforma legislativa, não se retomou, por exemplo, a compensação por horas extraordinárias existente antes do período da troika, não se retomou a indemnização por despedimento existente na altura, ou seja, em áreas onde era possível melhorar a capacidade negocial dos trabalhadores e, por outro lado, a sua remuneração, não se foi tão longe como seria desejável", lamenta.
Também na negociação coletiva, "apesar de se terem retomado medidas no sentido de maior transparência visando a caducidade e de evitar vazios convencionais relativamente às questões da arbitragem, também não se reverteu essa possibilidade de caducidade unilateral", denuncia, até porque considera que é uma "questão chave do poder negocial dos trabalhadores e dos sindicatos, sobretudo no setor privado".
Sindicatos precisam de mais capacidade e têm tido "obstáculos políticos"
Para Maria da Paz Campos Lima, os sindicatos têm hoje um desafio enorme, não só em Portugal mas também no resto da Europa, e combina as questões salariais, que ganharam peso quando a inflação disparou, com os restantes temas, como a redução dos horários do trabalho.
Quando se fala na digitalização e na inovação tecnológica, a valorização do trabalho também passa pela redução do tempo de trabalho. Aqui, esta socióloga defende que "a convergência sindical seria fundamental no caminho para as 35 horas semanais, seria mobilizadora e muito importante para a valorização do trabalho".
A investigadora lembra ainda que "não basta dizer aos sindicatos que têm razão, por exemplo, na luta por aumentos salariais. É preciso que os sindicatos tenham maior capacidade. E tem havido obstáculos políticos relativamente a ir por este caminho".
"A posição sindical é muito frágil e aborda esta luta numa posição frágil", defende a socióloga. Por isso admite que vê com interesse e muita atenção "a emergência da ação sindical mais reivindicativa, recorrendo à greve, movimentos sociais que colocam questões de ordem laboral e da vida digna e contra o custo de vida". Para esta investigadora, estes movimentos representam uma "tomada de consciência da organização coletiva, que são fatores que vão ser muito importantes na capacidade de enfrentar estes e os novos desafios que estão aí".
A desvalorização do trabalho
A desvalorização do trabalho tem marcado e acompanhado o trabalho em Portugal desde o início desde século. Já passou por diferentes fases, mas mantem-se.
É uma das conclusões do livro "A Persistência da Desvalorização do Trabalho e a Urgência da sua Revalorização", coordenado por José Castro Caldas e Maria da Paz Campos Lima. Aqui os autores analisam o período que vai da crise de 2008 até à atualidade, com a incidência ainda no período da pandemia. Já no final, tocam no efeito da inflação no trabalho e nos salários.
Segundo a socióloga, "a questão da desvalorização salarial é colocada a partir principalmente da crise internacional de 2008 e das respostas a essa crise, que a partir de 2010 se traduziram pelas políticas de austeridade neoliberal, que em Portugal se organizaram a partir da intervenção da troika".
Defende que "foi uma estratégia de desvalorização interna, deliberada, em que o principal fator de ajustamento eram os direitos laborais e sociais, e que se traduziu na desvalorização salarial a partir de cortes nos salários nominais - isto foi o que aconteceu, claramente, no setor público - e de congelamento no salário mínimo, no caso, no caso português, durante um período de três anos".
A estas medidas acrescem ainda outras decisões, que visaram a "desvalorização salarial e reduzir o poder negocial dos trabalhadores, incluindo a redução da compensação por horas extraordinárias, o aumento do horário de trabalho no sector público sem compensação equivalente, a redução das indemnizações por despedimento e um conjunto de medidas afetando diretamente a negociação coletiva, como, por exemplo, as limitações e o bloqueio à extensão das convenções coletivas".
A investigadora conclui que "esta foi uma modalidade de desvalorização salarial" que "atacou directamente os salários nominais e a negociação coletiva e, ao mesmo tempo, alterou a capacidade negocial dos trabalhadores e provocou um nível elevadíssimo de desemprego", que chegou aos 17%".
Os trabalhadores ainda não recuperaram o que perderam
Com o primeiro governo socialista de António Costa e a gerigonça, "há, de facto a reversão de um conjunto de medidas de desvalorização salarial do período da troika, designadamente a recuperação da trajetória ascendente do salário mínimo, a extensão das convenções coletivas, o desbloqueio das carreiras (pelo menos parcial) no sector público e a eliminação dos cortes dos salários nominais", diz Maria da Paz Campos Lima.
São alterações que "constituem uma aceleração da recuperação do desemprego muito significativa e sem precedentes e para alguma recuperação salarial, embora moderada", sublinha. esta recuperação começa a notar-se em 2019, um ano antes da pandemia.
No entanto, "continua a existir desvalorização salarial", alerta a socióloga à Renascença. "Há um princípio de recuperação em 2019, de reversão dessa tendência de deflação salarial. Mas, digamos, há uma situação de moderação e é obviamente mais acentuada no setor público, onde tarda a recuperação da negociação coletiva".
Pandemia: o travão
A Covid-19 impôs aos trabalhadores um período crítico, do ponto de vista da negociação coletiva e de dificuldades. Só não foi pior graças à ação do Estado e às medidas de mitigação para impedir a escalada do desemprego. Ainda assim, é um período de "retração, relativamente à negociação coletiva e ao aumento salarial".
É neste período que emerge uma nova modalidade de desvalorização, que conta agora, de facto, com a inflação. "Agora já estamos a falar da desvalorização real dos salários, que acabam por funcionar como o equivalente do que tinham sido os cortes dos salários nominais no tempo da troika", defende. No entanto, estamos noutra fase, esta "é claramente diferente e onde as questões se vão colocar de forma nova", avisa a investigadora.
Os novos desafios do trabalho
"Quando pensamos nas novas tecnologias e na plataformização do trabalho, percebemos que há desafios que têm tido respostas ambíguas", defende Maria da Paz Campos Lima.
A investigadora do Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território do ISCTE dá o exemplo do caso português, onde "há progressos nalguns pontos relativamente ao reconhecimento destes trabalhadores, mas há algumas ambiguidades relativamente às responsabilidades patronais das plataformas, do ponto de vista de assumirem responsabilidades no plano laboral e da proteção social dos trabalhadores".
Esta plataformização está também a abranger trabalhadores altamente qualificados, já não são só os condutores da UBER ou outras empresas do género. É trabalho parcelizado, muito especializado.
"A pretexto das possibilidades oferecidas pela tecnologia, têm sido desencadeados processos de reestruturação, vimos isto na banca. No entanto, muitas vezes têm outros objetivos, acabam por despedir trabalhadores para a seguir contratar outros em condições mais precárias", avisa a socióloga.
Na verdade, o universo dos precários tem aumentado, "já não é apenas o dos precários com baixos salários e baixas qualificações, é também dos precários com qualificações mais elevadas", agora com piores salários.
Outro desafio dos sindicatos é a possibilidade do teletrabalho se generalizar em alguns setores, "para além daquilo que seria desejável e criar condições de isolamento aos trabalhadores".
Outra ameaça ao trabalho são as restruturações, que segundo esta socióloga serão consequência ou da digitalização ou da mudança climática e que "vão pôr em causa a quantidade do emprego e, provavelmente, outras condições associadas ao emprego."
"Da porta da empresa para dentro, quem decide?" Maria da Paz Campos Lima defende que a entidade patronal e/ou as novas tecnologias não devem intervir cegamente, "há políticas que podem ter um efeito de controlo". Esta é uma discussão ainda por fazer, incluindo pelas estruturas sindicais. "As políticas públicas podem proteger os trabalhadores de utilizações selvagens, se se pode dizer assim, da digitalização".
O populismo de direita quer capitalizar o descontentamento dos trabalhadores
Quando falamos de relações laborais e da ação sindical, incluindo as greves ou as manifestações sindicais, não costumam ser associadas ao populismo. Porquê? "Porque estamos a falar de movimento organizado, estruturado, que geralmente não se limita a fazer uma crítica, avança propostas concretas", explica esta socióloga.
"Por outro lado, há temas que assumiram uma importância crítica", lembra. Entre eles está a saúde, onde cerca de um milhão de pessoas não têm médico de família, ou os professores, que estão a envelhecer rapidamente e reclamam a reposição de direitos.
"Olhando para outros países europeus, os movimentos de greves e de mobilizações relativamente ao custo de vida, muitas vezes associados a cidadãos reformados ou pessoas que não estão no mercado de trabalho, também estão a ter lugar."
Neste contexto, "obviamente que o populismo de direita está a procurar capitalizar a seu favor estes processos", disso a investigadora não tem dúvidas. No entanto, "esta capitalização não resiste a uma análise mais fina, basta pensar que questões como os lucros extraordinários a direita foge completamente, medidas do ponto de vista da legislação laboral, benéficas para os trabalhadores, não há propostas de facto nesse sentido".
Maria da Paz Campos Lima conclui que "é a agitação pela agitação, procurando utilizar o descontentamento. E é populismo no sentido em que se protesta sem avançar qualquer proposta concreta ou estruturada, que vise solucionar as questões ou propor alternativas relativamente consistentes".