Guerra na Ucrânia: Viagem de um cardeal pelos destroços da humanidade perdida às portas de Kiev
16-04-2022 - 00:42
 • José Pedro Frazão

Numa missão de conforto e misericórdia, em plena Sexta-Feira Santa, o enviado do Papa Francisco à Ucrânia fez-se à estrada que liga Kiev a Bordyanka. São 40 quilómetros de morte e destruição, entre o pó de edifícios colapsados e a terra revolvida num terreiro, em Bucha. O dia acabou com um terço projetado numa vala comum.

Com quatro prédios arrasados e dois colapsados à força de duas bombas russas, quase ninguém repara na estátua de Taras Shevchenko, herói nacional que deu nome à praça central de Bordyanka. Também foi alvo de vandalização dos ocupantes, com um disparo no busto do escritor que, tantas vezes, João Paulo II citou na sua visita à Ucrânia, em junho de 2001.

O cardeal Konrad Krajewski deve ter memória de ter ouvido o seu conterrâneo Pontífice declamar que “podem não existir inimigos, mas existirão a criança, a mãe e as pessoas na Terra”.

Nesta Sexta-Feira Santa, tudo parece tão distante da poesia de Taras e dos novos caminhos da Ucrânia, quando o esmoler do Papa entrou na praça para ver, em primeira mão, o estrago provocado pelo inimigo-mor de Kiev.

Dez passos à frente da estátua, Krajewski deteve-se frente aos prédios bombardeados. Assim fazem quase todos os líderes ocidentais que ali têm passado nesta semana. Mas ao contrário dos chefes de estado da Polónia, Estónia, Letónia e Lituânia, este homem de batina preta chegou sem escolta militar, sem colete anti-bala, sem cinco polícias para um dirigente político.

D.Konrad Krajeweski só tinha alguns terços nos bolsos e talvez um telemóvel bem guardado, quando entrou na praça.

Acompanhado pelo Núncio Apostólico em Kiev e pelo reitor do Seminário de Vorzel, que se situa nos arredores norte da capital, observou os trabalhos de resgate e começou a ler uma das meditações da Via Sacra deste ano. Escolheu a meditação da Segunda Estação, por uma família em missão, que evoca a traição de Judas e o abandono de Jesus pelos discípulos.

“Confrontados, por vezes, com a dor e o sofrimento de uma mãe que morre no parto ou até debaixo de bombas, ou uma família destruída pela guerra, fome ou abuso, a tentação é responder com a espada. Fugir, deixar tudo a pensar que nada vale a pena. Mas isso seria trair os nossos irmãos mais pobres, que são a Tua carne no mundo e que nos recordam que Tu és aquele que Vive”.

O cardeal Krajewsky esteve quase sempre em silêncio, em recolhimento entrecortado por orações como o Pai Nosso ou o Credo. Inteirou-se do trabalho das equipas de emergência, deteve-se frente a um dos prédios destruídos pelas bombas e observou o movimento das retroescavadoras que retiram destroços dos prédios.

Desde o início da jornada, em nome do Papa na Ucrânia, que o cardeal polaco vem mostrar a proximidade de Francisco em relação aos que sofrem com esta guerra. Nesta Sexta-Feira Santa, o enviado do Sumo Pontífice foi mais longe na aproximação aos lugares de sofrimento e morte nos arredores de Kiev.

Em Borodyanka, aproximou-se o mais possível desses prédios em ruínas. Num desses edifícios, onde exista uma porta para uma loja, hoje há um buraco enorme e a partir dessa entrada de luz o cardeal lançou um olhar para o trabalho dos bombeiros nas lajes colapsadas no interior, procurando mais corpos.

Ao lado, os bombeiros localizavam mais um corpo nos escombros. Foi uma Sexta-Feira Santa ainda mais sombria, ao contabilizar o décimo segundo corpo do dia a ser retirado das entranhas de cimento que já foram de um prédio de habitação. Trata-se de metade do número de mortos resgatados nos nove dias anteriores, num total que está a aproximar-se das quatro dezenas de vítimas mortais.

O cardeal Krajewsky procurou uma pequena base de cimento para acompanhar esses trabalhos em recolhimento. Em silêncio, observou como cinco bombeiros resgataram este corpo decomposto para um lençol branco. Quando as feições dos membros que restavam deste corpo ficaram depositadas no chão, o enviado do Papa ajoelhou -se num pedaço de cimento que caiu do prédio, cheio de pó, sujando as calças, mas preservando a batina.

Mais uma vez, o cardeal Konrad deu um passo em frente, quando o corpo passou diante dele naquele lençol plastificado. Fez o sinal da cruz sobre o cartão de identificação encontrado no cadáver deste homem de 45 anos, provavelmente soterrado ao lado de duas mulheres, como apurámos junto do coordenador do resgate.

O esmoler pontifício abraçou dois bombeiros e insistiu em aproximar-se deste corpo inerte e desfigurado envolvido num lençol. Antes que cobrissem o corpo com um saco preto do processo forense, o cardeal deu mais dois passos em frente e voltou a ficar silencioso.

Ajoelhou-se, e depois colocou a mão direita sobre este corpo. Levantou-se, inclinou-se em respeito e só o ruído das retroescavadoras abafavam o choro de tristeza e muita indignação que o capelão militar que o acompanhava não conseguiu conter.

Pormenores não são pormenores na guerra. Alguém entregou ao Cardeal uma Bíblia cheia de pó, retirada dos escombros. Krajewski beijou-a e levou-a de Borodyanka no seu carro.

Ao longo do dia, o Cardeal polaco serpenteou de carro os 40 quilómetros do arco norte de Kiev, na estrada que liga Borodyanka à capital ucraniana. Passou por Irpin, onde as marcas de uma batalha terrestre muito dura são evidentes à beira da estrada.

Igrejas, supermercados, farmácias, edifícios residenciais, nada foi poupado. Jazem tanques e carros baleados ainda no alcatrão e nas valetas. A ponte de Irpin já se atravessa nos limites da física, tal como a de Borodyanka. Ambas foram destruídas para travar o avanço russo.

A manobra de defesa ucraniana levou os russos para os arredores, com os tanques deslizando nas várzeas e os contigentes ocupando casas e edifícios de comércio. É assim que, em Bucha, nasceu um massacre que as autoridades internacionais investigam na premissa de que os crimes de guerra são evidentes.

Depois de uma pausa para uma celebração no Seminário de Vorzel, despido de estudantes e funcionários desde o início da guerra, a polícia abriu caminho para Bucha e para o terreiro que fica nas traseiras da Igreja Ortodoxa de São Miguel.

Na vala comum deteve-se por um momento, mais uma vez em silêncio. Depois, pediu ao reitor do seminário que cantasse algo em ucraniano, como já tinha feito em Borodyanka. E, mais uma vez, o capelão militar chorou ao rezar e cantar.

Depois de orações pelas vítimas, Krajewsky ajoelhou-se num monte de terra, terra que já cobriu os cadáveres agora em perícias forenses. Sempre em silêncio, procurou algo no bolso. Eram 18 horas em ponto, quando o enviado do Papa atirou um terço trazido do Vaticano para a vala comum de Bucha.

No final, apenas uma declaração que continha tudo o que sentiu nas palavras possíveis nesta missão de Sexta-Feira Santa nos horrores da guerra às portas de Kiev.

“Faltam-nos as lágrimas, faltam-nos as palavras. Mas ainda bem que há fé e que estamos na Semana Santa, Sexta-feira Santa, quando nos podemos unir com a pessoa de Jesus e subir com Ele para Cruz, porque depois da Sexta-Feira Santa... eu sei, eu sei: haverá o Domingo da Ressurreição. E, talvez, Ele nos explique tudo com Seu amor e mude tudo também dentro de nós, esta amargura e este sofrimento que carregamos há alguns dias, mas principalmente a partir do dia de hoje".